Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Philip Roth empresta voz ao medo de ter a vida interrompida pela violência

J.M. Coetzee escreveu que narrativa de 'Complô Contra a América' é mais urgente que a própria história

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Em “Complô Contra a América” (2004), Philip Roth questiona o que poderia ter acontecido com os Estados Unidos e com os países envolvidos na Segunda Guerra Mundial se Franklin D. Roosevelt não tivesse sido reeleito para um terceiro mandato em 1940 —e, em seu lugar, o aviador Charles A. Lindbergh, notório isolacionista, tivesse assumido a Presidência, negando-se a participar da guerra em suporte às potências aliadas.

Além do isolacionismo pelo qual se tornou historicamente conhecido —Lindbergh foi porta-voz do movimento America First— Roth caracteriza, em sua ficção, o aviador como simpático ao nazismo e ligado à alta cúpula do Terceiro Reich.

Há, inclusive, um trecho em que Roth imagina uma visita de Joachim von Ribbentrop à Casa Branca, com direito a um suntuoso baile em que a nata da sociedade americana é fotografada trocando sorrisos e apertos de mão com o ministro nazista das Relações Exteriores.

Tudo isso como se o que estivesse acontecendo na Europa não pudesse acontecer nos Estados Unidos, como se as consequências do populismo reacionário e a perseguição de minorias étnicas e religiosas fosse algo distante e completamente alheio à realidade norte-americana.

Mas, em um país marcado pela diversidade, como os Estados Unidos —em que a aparente harmonia entre diferentes grupos repousa em um frágil estabilizador cultural, a tolerância—, quais seriam as consequências de um presidente cujo comportamento endossa o preconceito ainda que de modo ambivalente, a confundir vítimas em potencial? Será, realmente, que a postura de uma só pessoa poderia ter algum impacto no correto funcionamento das instituições, bem como na vida milhões de indivíduos?

O autor explora essa questão ao imaginar quais poderiam ter sido as consequências diretas e indiretas da ascensão política de Lindbergh na vida dos Roth, uma família judia da cidade de Newark, Nova Jersey.

Antes mesmo da eclosão dos distúrbios sociais que marcam a última parte do romance, a culminar com o assassinato de um jornalista e pré-candidato a Presidência, a dispersão de parte da comunidade local para pontos isolados do território americano e o linchamento seguido de morte de uma antiga vizinha, a família Roth passa por uma série de reconfigurações narradas por Philip —personagem homônima do autor—, uma criança entre 7 e 9 anos de idade, que presta atenção na conversa dos mais velhos, temeroso do impacto dos acontecimentos na sua vida até então tranquila.

Em texto para a New York Review of Books, o escritor J.M. Coetzee nos chama a atenção para o fato de que “Complô Contra a América” não é exatamente uma distopia nem um romance histórico:

“Um romance histórico é, por definição, ambientado em um passado histórico real. O passado em que ‘Complô Contra a América’ se passa não é real. O ‘Complô’ é, portanto, em linhas gerais, não um romance histórico, mas distópico, embora incomum, uma vez que o romance distópico é geralmente ambientado no futuro; um futuro para o qual o presente parece tender [...]. No romance distópico típico, há uma lacuna conveniente entre o presente e o futuro - conveniente porque libera o autor de ter que demonstrar passo a passo como o presente se transforma em futuro. A tarefa de Roth é mais difícil.”

No entanto, para além do tratamento dos fatos históricos e da capacidade de Roth em perscrutar as tendências que sempre atuaram de forma subterrânea na política do seu país, o que há de mais especial em seu livro talvez seja a maneira encontrada pelo autor de emprestar uma voz à experiência do temor que muitos de nós sentimos —enquanto membros de alguma minoria historicamente perseguida— de ter as nossas vidas bagunçadas ou até mesmo interrompidas pela imprevisível violência dos acontecimentos. Tal acontece com Philip:

“Uma vida nova teve início para mim. Eu vira meu pai se descontrolar, e a minha infância jamais voltaria a ser como antes. Aquela mãe que sempre estava em casa agora passava o dia trabalhando na Hahne’s; o irmão sempre disponível ia trabalhar para Lindbergh depois da escola; e o pai que havia desafiado uma lanchonete cheia de antissemitas em Washington, agora chorava alto e de boca aberta — como um bebê abandonado e também como um homem torturado — por se sentir impotente diante daqueles eventos imprevistos. E, como a eleição de Lindbergh me ensinara muito bem, o desenrolar de um imprevisto era tudo. Visto de trás para a frente, o imprevisto implacável era o que estudávamos na escola sob o nome de 'História', uma matéria inofensiva em que todo o inesperado do momento em que ocorrera surge estampado como inevitável. É o terror imprevisível que a ciência da história encobre, transformando desastre em epopeia”.

Ao prestarmos atenção nas histórias das pessoas que nos cercam ou mesmo se nos atrevermos a confrontar tanto a nossa indignação política como a nossa exaustão durante este longo período de pandemia, tenho certeza que seremos capazes de nos identificarmos, ainda que superficialmente, com a experiência de Philip ao observar a reconfiguração da sua vida familiar a partir do momento em que os eventos passam a determinar o seu cotidiano e a conservação das suas lealdades afetivas.

Afinal, quando, na sala de jantar, os nossos familiares sucumbem à agressividade das suas paixões políticas, como saber, com segurança, em quem podemos confiar?

Talvez por isso, em seu comentário sobre “Complô Contra a América”, Coetzee também argumente que o romance de Roth tenha sido capaz de nos apresentar uma narrativa ainda mais urgente que a própria história:

“À medida que narra a irrupção do imprevisto implacável na vida de uma criança, ‘Complô Contra a América’ é um livro de história, mas de um tipo fantástico, com sua própria verdade, o tipo de verdade que Aristóteles tinha em mente quando disse que a poesia é mais verdadeira do que a história — mais verdadeira por causa do seu poder de condensar e representar o multifacetado no típico”.

Ainda sobre esse quesito, em julho do ano passado, escrevi para esta Folha sobre a importância da contação de histórias a partir de uma reflexão inspirada no pensamento de Hannah Arendt. Para Arendt, a narrativa cumpre um importante papel na transmissão do saber.

É através do exame das situações que acometem os indivíduos e que influenciam as suas ações que nós podemos refletir sobre a pertinência do nosso conhecimento político tradicional ante o ineditismo histórico. É neste sentido que “Complô Contra a América” permanece relevante.

Para Bruna, no dia do seu aniversário.

Em tempo: aos interessados no autor comentado, recomendo a leitura da tese de doutorado de Isadora Sinay sobre o Holocausto na obra de Philip Roth.

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