Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Hannah Arendt joga luz sobre as consequências políticas da solidão

Autora de nova biografia da filósofa ressalta caráter inédito do iliberalismo do nosso tempo, movido por algoritmos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Lançada em agosto deste ano, a biografia de Hannah Arendt escrita pela professora Samantha Rose Hill oferece uma espécie de introdução ao pensamento arendtiano a partir de um recorte que nos permite compreender a forte relação entre os mais diversos temas abordados pela filósofa e as suas experiências de vida.

O livro de 232 páginas é dividido em 20 breves capítulos a descrever a trajetória de Arendt desde a infância, em Königsberg, no início do século 20, passando por sua juventude, a abordar sua tese de doutorado sobre o conceito de amor em Santo Agostinho; concluindo com a sua morte em 1975, em Nova York, durante a composição de “A Vida do Espírito” (1977).

O trabalho de Hill de modo algum visa competir com a célebre biografia escrita pela psicoterapeuta Elisabeth Young-Bruehl: “Hannah Arendt: Por Amor ao Mundo” (1982). Embora Young-Bruehl impressione pela riqueza de detalhes e pela acuidade das suas análises, algo que também caracteriza a sua desenvoltura na biografia de Anna Freud (1988), em seu livro sobre Arendt ela não faz concessões ao leitor de primeira viagem.

Alguns dos seus capítulos, ao exemplo das páginas que ela dedica à relação entre Arendt e o sionismo, exigem do leitor conhecimento prévio sobre a história dos judeus da Europa entre o final do século 18 e a primeira metade do século 20, além de familiaridade com a história do movimento sionista, das suas mais diversas correntes e protagonistas e com o passo a passo das negociações diplomáticas a culminar, em 1948, com a fundação do Estado de Israel.

Hill, por outro lado, possibilita-nos um primeiro e descomplicado acesso às ideias de Arendt. Muito mais que os detalhes que impressionam na obra de Young-Bruehl, o que chama a atenção no livro de Hill é o seu poder de síntese, ou seja, a sua habilidade em determinar o que há de essencial para a compreensão do objeto em estudo.

Neste sentido, Hill deixa transparecer o seu interesse de pesquisa pelas consequências políticas da solidão, tema igualmente abordado por Arendt em “Origens do Totalitarismo” (1951).

A recorrência desse tema ao longo da biografia, desde o capítulo sobre a infância de Arendt, a retratar a morte do seu pai, até os momentos finais da narrativa, em que Hill comenta a rotina de Arendt durante a escrita da sua última e inacabada obra, é certamente algo que empresta ao livro o seu apelo contemporâneo, oferecendo-nos a oportunidade de questionar o tipo de relacionamento que podemos manter com o mundo e, também, com o nosso próprio pensar.

Segundo Arendt, muitas vezes, para desenvolver qualquer atividade criativa, o ser humano precisa de manter certo grau de isolamento. Assim, para escrever este texto, precisei de passar alguns momentos sozinha, diante do computador. No entanto, esse isolamento não significou, para mim, uma quebra de vínculo com o cotidiano. Afinal, pude interrompê-lo para fazer outras coisas ou simplesmente descansar.

Igualmente, embora estivesse reclusa em meu escritório, ao refletir sobre essas questões, estabeleci um diálogo com Arendt e com a autora da sua biografia. Ora, quem pensa nunca está realmente sozinho ou desamparado.

Assim, em “Origens do Totalitarismo”, Arendt observa:

“A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois em um não perde o contato com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual estabeleço o diálogo do pensamento”.

Em texto republicado em português pela Revista do Instituto Humanitas (Unisinos), Hill argumenta: “A solidão surge quando o pensamento está separado da realidade, quando o mundo comum foi substituído pela tirania das demandas lógicas coercitivas”.

Isso acontece, por exemplo, quando nos habituamos a explicar as nossas próprias experiências a partir de um sistema de crenças quaisquer em vez de nos permitirmos compreender a nossa situação a partir dos detalhes daquilo que vivenciamos, como se pudesse existir uma realidade ainda mais verdadeira que aquela que experimentamos.

A partir do que Arendt escreve em “Origens do Totalitarismo”, Hill argumenta que uma das principais consequências políticas da solidão estaria em “[destruir] a capacidade que um indivíduo possui de distinguir entre fatos e ficção, de fazer juízos”.

Em alguns momentos da sua obra, como na introdução da coletânea “Entre o Passado e o Futuro” (1961), Arendt evoca uma célebre frase do poeta francês René Char para caracterizar o ineditismo político da sua época: “A nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”.

Em 2017, a onda de iliberalismo conflagrada pela ascensão política de Donald Trump fez com que “Origens do Totalitarismo” se tornasse um dos livros mais vendidos nos Estados Unidos, como se Arendt tivesse todas as respostas para o que estava acontecendo. Porém, ao final da biografia, Hill chama a atenção para o fato de que o iliberalismo do nosso tempo também estaria marcado por certa dose de ineditismo.

Basta dizer que, hoje, as consequências políticas da solidão estão sendo agravadas pela lógica dos algoritmos nos quais se baseiam as redes sociais e, que, se não tomarmos as devidas precauções, esses mesmos algoritmos podem facilmente rachar comunidades e encerrar cada indivíduo em uma bolha, ao exemplo do que analisa a pesquisadora Carissa Véliz, em livro recentemente publicado no Brasil sob o título “Privacidade É Poder” (2021):

“Você pode se perguntar qual é a diferença, se é que existe alguma, entre anúncios políticos microdirecionados, baseados em dados pessoais e propagandas políticas tradicionais [...]. O que é novo e destrutivo é mostrar a cada pessoa informações diferentes e potencialmente contraditórias [...]. Os anúncios personalizados fragmentam a esfera pública em realidades paralelas separadas. Se cada um de nós vive em uma realidade diferente porque estamos expostos a conteúdos dramaticamente diferentes, que chances temos de ter debates políticos saudáveis?” .

Embora tenhamos a vantagem com relação ao século 20, de possuirmos nos textos de Arendt uma espécie de testamento, Hill deixa claro que estaríamos cometendo grave equívoco caso estivéssemos buscando em Arendt uma maneira de simplesmente adequarmos os problemas da nossa época aos diagnósticos políticos propostos pela filósofa: “A verdade nos dá uma sensação de estabilidade no mundo. Mas, assim como o chão [sob os nossos pés] e o céu [sobre as nossas cabeças], ela está sempre em movimento”.

Muita coisa mudou desde a morte de Arendt em 1975. Portanto, talvez devêssemos ler a sua obra imbuídos do mesmo espírito com que ela se encarregou de caracterizar os textos de G.E. Lessing em “Homens em Tempos Sombrios” (1968), classificando-os de "fermenta cognitionis" ("food for thought", como diriam os americanos).

Neste sentido, Hill conclui a biografia de Arendt com uma mensagem que pode ser interpretada seja como uma advertência, seja como um convite ao pensamento:

“Nosso século não é o de Hannah Arendt, e isso faz parte do desafio que Arendt nos propõe. No cerne do seu trabalho está o argumento de que devemos continuamente pensar o mundo de novo, definir novos limites, desenhar novas constelações, encontrar uma nova linguagem e contar novas histórias. Esta é a herança que ela nos deixou”.

Com isso, Hill recupera o que talvez seja a principal mensagem de Arendt para a nossa época: a importância de aprendermos a pensar por conta própria a partir das nossas experiências em um mundo compartilhado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.