Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

O que torna um livro difícil?

Leituras que demandam esforço renovam nossa curiosidade sobre tudo o que cerca a condição humana

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Na última quarta-feira (1º), perguntei aos meus seguidores no Twitter quais foram as leituras mais difíceis das suas vidas. Como surpreendi-me com a repercussão da postagem, resolvi escrever sobre o assunto.

Entre as obras literárias mais citadas figuram títulos das mais diversas origens: “Ulysses”, de James Joyce, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, “O Som e a Fúria” de William Faulkner, “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, e “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri.

Já entre os livros de filosofia, os alemães ficaram na frente, com várias menções à “Fenomenologia do Espírito”, de Hegel, e à “Crítica da Razão Pura”, de Kant. Houve também quem mencionasse alguns pensadores franceses do século 20, entre eles: Jean-Paul Sartre, Michel Foucault e Jacques Derrida.

Mas pouquíssimas foram as referências a pensadores de língua inglesa e, nem preciso dizer que, além de uma ou outra referência a José Arthur Giannotti, até o momento, nenhum outro filósofo brasileiro foi mencionado.

Houve, também, quem se espantou com a minha revelação de que o romance “Afinidades Eletivas”, de Goethe, ocuparia um lugar de destaque na minha lista de livros difíceis. Do mesmo modo, acabei sendo pega de surpresa quando alguém revelou ter dificuldade para entender a linguagem de Machado de Assis. Portanto, talvez ainda seja importante indagarmos: o que é mesmo um livro difícil?

Alguns livros são difíceis porque não estamos acostumados com a linguagem empregada por seu autor. Outros porque ainda carecemos do conhecimento necessário para compreender algumas das suas reflexões.

Existem, também, aqueles que se tornam difíceis porque tratam de assuntos que mexem diretamente com os nossos medos, bem como os que parecem fáceis durante uma primeira leitura, mas que, ao estudarmos com atenção, mostram-se infinitamente mais complexos (ao exemplo de “Afinidades Eletivas”, sobre o qual acabei dedicando um longo capítulo da minha tese de doutorado).

Por fim, existem aqueles livros que tentam criar mil e uma dificuldades para o leitor na tentativa de ocultar os seus próprios defeitos, mas sobre esses não pretendo comentar. Digo apenas que aprendemos a reconhecê-los à medida que acumulamos experiência.

Para todos os outros livros, sempre existe uma maneira de contornarmos essas dificuldades sem necessariamente frustramos as nossas ambições de leitura.

Por exemplo, nunca é demais ressaltar a importância de mantermos fichamentos sobre o enredo, o vocabulário, os personagens, os temas, bem como sobre qualquer outro detalhe que nos tenha chamado a atenção em uma obra. Isso eu aprendi graças a um amigo de adolescência que mantinha um caderninho de anotações na esperança de um dia conseguir terminar a leitura de “Anna Karenina”, de Tolstói.

Igualmente, no caso de um texto filosófico ou mesmo de uma obra literária mais complexa, vale a pena frequentar grupos de leitura e pesquisa encabeçados por pessoas que tenham maior intimidade com o pensamento de determinado autor.

Quando comecei a estudar filosofia, beneficiei-me da disciplina exigida pelas atividades de leitura guiada e pelas discussões de um grupo sobre a “Fenomenologia do Espírito.” Assim, ao longo de um ano, pude finalizar, pela primeira vez, o estudo dessa obra que tantos consideram impenetrável.

Ilude-se quem pensa que toda leitura deve ser feita no mais completo isolamento, como se, ao trabalharmos em equipe, corrêssemos o risco de sermos contaminados por opiniões alheias ou de termos as nossas próprias ideias roubadas.

Não há dúvidas de que a atividade solitária seja uma etapa fundamental em um projeto criativo. Aliás, já escrevi sobre isso aqui na Folha. No entanto, em um grupo, aprendemos que tanto a leitura como o conhecimento que dela conseguimos extrair sempre acabam sendo frutos de uma espécie de cooperação.

Pois, quem sabe, a maior vantagem de se frequentar um grupo de leitura talvez seja a de que, ao aprendermos a trocar ideias, também desenvolvamos a capacidade de discutir com os nossos próprios livros de modo a questionar algumas das nossas certezas. Ora, nada é mais oportuno que sabermos o que e como perguntar a um texto.

Outra observação importante para quem pretende enfrentar um livro difícil é saber ter paciência e reconhecer que uma leitura dessas pode demandar tempo. Assim como passei um ano agarrada na “Fenomenologia do Espírito”, uma internauta comentou haver levado igual tempo para ler “A Montanha Mágica”. Contudo, ninguém sai perdendo quando encara a leitura como um projeto de duração variável.

Existem livros que podem ser atravessados em uma questão de horas, dias, meses ou até mesmo anos inteiros. Outro internauta contou que estava há 14 anos tentando finalizar a leitura de “Guerra e Paz”, de Tolstói. Comentários deste tipo são perfeitamente legítimos. A verdade é que, independentemente do grau de dificuldade, alguns livros haverão de nos acompanhar pelo resto da vida.

Recentemente, Thais Lancman, autora da coletânea de contos “Pessoas Promíscuas de Águas e Pedras”, obra semifinalista da mais recente edição do Prêmio Oceanos, comentou comigo que está prestes a concluir a leitura dos sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust.

Todos os anos, sempre no mês de agosto, Thais enfrenta um volume de Proust. Esse projeto surgiu quase que por acidente, a partir da sua dificuldade para escolher entre as traduções de “Em Busca do Tempo Perdido” feitas por Mário Quintana e Fernando Py: “Terminei o primeiro volume cansada e não quis emendar o segundo. Aí, no ano seguinte, por coincidência, decidi voltar a ler Proust em agosto, e isso virou um projeto anual". Esse ritual de leitura, inclusive, tornou-se um dos temas do mais novo livro de Thais, “Meu Ano Flávio de Carvalho”, agora em fase de pré-lançamento.

Gosto desse relato porque ele me remete aos meus projetos de leitura. Um deles, inclusive, permanece ativo! No meu primeiro inverno na Irlanda, comprometi-me a ler uma peça de Shakespeare por ano, sempre durante os feriados de Natal e Ano-Novo. De lá para cá, reli “Hamlet” e “O Mercador de Veneza” e li, pela primeira vez, “Rei Lear”, “Macbeth” e “A Megera Domada”.

A minha escolha das peças de Shakespeare é quase que aleatória. A única regra que procuro seguir nesse processo é a de que devo priorizar os textos que se comunicam com um determinado aspecto do meu trabalho em andamento. Assim, por exemplo, ao reler “Hamlet”, eu estaria, em verdade, buscando novos elementos para entender um pouco melhor algumas das características de “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe.

Da necessidade de se ler um autor para compreender outro, em “Janelas Irreais: Um Diário de Releituras”, Felipe Charbel comenta o que o teria estimulado a reler “A Tempestade”, de Shakespeare, ao deparar-se com a epígrafe do romance “O Teatro de Sabbath”, de Philip Roth. Desse modo, ao fazer uma aproximação entre essas duas obras, Charbel conclui:

“Para Próspero [personagem de Shakespeare], a terceira vida é uma escolha. Sabbath é lançado na velhice pela morte de Drenka. O que eles têm em comum é que, orgulhosos, fazem questão de dirigir o espetáculo do próprio declínio, cada um à sua maneira — elegante e comedida em Próspero, trágica e zombeteira em Sabbath".

Não sei até quando levarei o meu projeto adiante, mas o bom da leitura e, principalmente, daqueles livros difíceis que sempre nos estimulam a desafiarmos a nós mesmos é que, através deles, renovamos a nossa curiosidade sobre tudo aquilo que esteja relacionado à condição humana.

Finalmente, quem opta pela leitura de um livro difícil nunca corre o risco de se tornar um leitor de um só livro. Que o diga a minha biblioteca, que cresce à medida que me ocupo de entender aqueles livros que me enchem de perplexidade!

Além disso, um livro difícil sempre tem o potencial de se tornar nosso companheiro, seja pelo tempo que passamos juntos, seja pela maneira como a sua trama parece unir-se à textura da nossa própria vida.

No caso da minha leitura de Shakespeare, o que começou como um projeto de estudo acabou servindo-me de alento nos miseráveis dias de chuva em que todos estão em casa com as suas famílias, menos eu e o meu companheiro, estrangeiros por vocação.

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