Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Lemos nossos autores favoritos como se precisássemos deles para permanecer vivos

Descoberta de novos escritores é marcada por urgência, identificação e admiração pelas diferenças

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Todos possuímos a lembrança de como chegamos até os nossos autores prediletos. Os meus primeiros encontros com Nietzsche ocorreram na época do ensino médio, quase por acidente.

Lembro-me de estar matando aula na biblioteca, quando, de repente, depois de muito tempo em busca de algo interessante para ler, esbarrei com o volume dedicado ao filósofo publicado na série “Os Pensadores”, da editora Abril Cultural.

Até hoje não sei bem o que me fez tirar o livro da prateleira e começar a folhear o ensaio introdutório escrito por alguém cujo nome, infelizmente, não me recordo. Desse texto, guardo a maneira de como o autor utilizava-se de uma metáfora da medicina para frisar o caráter terapêutico e remediador do pensamento de Nietzsche; a estabelecer certo paralelo com o pensamento de Ludwig Wittgenstein, quem, mais tarde, acabaria me chamando a atenção.

Nunca me esqueci desse comentário, embora tenha quase certeza de que o tempo, a imaginação e a memória tenham feito de tudo para que eu distorcesse o seu significado.

Acredito, no entanto, que estas distorções sejam as razões pelas quais nos mantemos em uma longa e produtiva relação com determinada obra. Afinal, muitas vezes, a sensação que tenho é a de que sempre retorno a Nietzsche em uma tentativa de retificar a imprecisão das minhas primeiras recordações de leitura; como se estivesse a duvidar de mim mesma: “Será que foi isso mesmo que li?”.

Outra interessante característica destes primeiros encontros está em percebermos o caráter de urgência com o qual passamos a vislumbrar a leitura dos nossos escritores prediletos; como se precisássemos daquele livro para permanecermos vivos.

Certa vez, depois da aula, tomei um ônibus com a minha mãe para visitarmos a minha avó em Olinda. A viagem seria longa, pois a minha antiga escola fica no bairro da Madalena, na zona oeste do Recife. No meio do caminho, notei que havia deixado cair o meu exemplar de “Humana: Demasiado Humana” (2000): a biografia de Lou Andreas-Salomé, escrita por Luzilá Gonçalvez Ferreira. Assim, bati o ônibus inteiro como quem houvesse perdido a carteira com todos os documentos.

A minha mãe tentou me convencer de que ao voltarmos para casa compraríamos uma nova cópia. Mas eu não queria um livro novo. Eu queria o meu livro com as minhas anotações e todas as pequenas imperfeições que foram se somando à sua leitura enquanto meu objeto: as orelhas de burro, as páginas encardidas pelas minhas mãos e o cheiro de casa a emprestar-me a sensação de segurança durante o seu manuseio.

Finalmente, convenci a minha mãe de que precisávamos retornar ao nosso ponto de partida porque, se demorássemos para resgatar o livro, poderia ser tarde demais: ... e se começasse a chover? E se ele houvesse sido destroçado por um ônibus? E se ele caísse nas mãos de alguém para quem a sua mensagem não tivesse qualquer importância?

Como eu poderia viver sabendo que permiti a pior das desgraças acontecer a um livro que eu amava, o qual me apresentou dois preciosos modelos de vida: Luzilá e Lou Salomé.

Por sorte, recuperamos o livro. Ele havia sido resgatado por um vendedor de bombons, que testemunhara o exato momento em que o volume escorregara do meu fichário para a calçada. Assim retomamos a viagem a tempo de passarmos o resto da tarde com a minha avó, a espera do meu pai: a trocar ideias sobre o funcionamento do mundo e devorar tapiocas na ladeira do Mosteiro de São Bento.

Recentemente, confessei a uma amiga que um dos meus maiores medos sempre foi o de perder a minha biblioteca e, com isso, todos aqueles livros que, de uma forma ou de outra, definiram o curso da minha vida.

Em ensaio sobre Elias Canetti, escritor de origem judia e vencedor do Nobel de literatura em 1981, Susan Sontag comenta da diferença entre se ter uma biblioteca e se colecionar livros: “A constituição de uma biblioteca não tem nada a ver com a arte de colecionar livros descrita por [Walter] Benjamin de forma memorável, ou seja, uma paixão pelos livros enquanto objetos materiais (livros raros, primeiras edições). É, antes, a materialização de uma obsessão cujo ideal é guardar os livros dentro da própria cabeça; a biblioteca real é apenas um sistema mnemônico. Assim, Canetti apresenta Kien [protagonista de ‘Auto-de-Fé’] sentado à sua mesa de trabalho preparando um artigo complexo sem virar única página ­¾ só mentalmente (...) Canetti mais tarde passou a descrever a si próprio nos seus cadernos a partir dessa imagem, ao exemplo de quando caracteriza a sua vida como sendo simplesmente uma tentativa desesperada de pensar em tudo: ‘de modo que tudo seja juntado em uma cabeça para, consequentemente, tornar-se uma unidade’. Afirmando, desse modo, a própria fantasia que escarnecera em ‘Auto-de-Fé’”.

Penso que talvez seja isso mesmo. Pois sempre acabo consultando os meus livros de olhos fechados; a traçar relações entre uma e outra obra como se estivesse a expandir os limites do meu pensamento. Deste modo, sinto-me tranquila na presença dos meus livros porque somente através deles percebo-me capaz de colocar as coisas nos eixos.

Sontag, aliás, cuja biblioteca possuía cerca de 20 mil títulos, é responsável pelo meu primeiro encontro com Canetti; autor que comecei a ler faz algumas semanas, atraída pelo que poderia haver de semelhante no modo como articulamos as nossas identidades judaicas, as nossas heranças culturais de origem ibérica e o nosso fascínio pelos escritores de língua alemã. De modo a assegurar-me de que entre esses elementos não haveria contradição. A certificar-me, portanto, de que não há nada de errado em alguém, como eu, haver passado tantos anos estudando literatura e filosofia alemã.

Essa, talvez, seja a mais importante característica da relação inaugural que mantemos com os nossos escritores prediletos, ou seja, a possibilidade de nos identificarmos com alguns aspectos da obra e da biografia de determinado autor ao tempo que permanecemos capazes de reconhecer e admirar o que faz com que eles também nos sejam distintos.

Ainda em seu ensaio sobre Canetti, Sontag comenta sobre como um exame atento da vida e da obra deste escritor, focado na leitura e na atividade intelectual, acabaria revelando a sua aderência a uma espécie de ética da admiração: “Agrada-lhe o desafio lançado por inimigos de valor (Canetti conta com alguns ‘inimigos’ — Hobbes e Maistre — entre os seus escritores favoritos) e a força auferida de um modelo inatingível, que o leva a humildade (...) Canetti é estimulado constantemente pelo exemplo dos grandes escritores desaparecidos; identificando a necessidade intelectual de sua empreitada, verificando a temperatura de sua mente, estremecendo de terror à passagem do tempo”.

Mensagem esta que encontramos já nas primeiras páginas de “A Língua Absolvida” (1977), primeiro volume da autobiografia de Canetti: “Há poucos males que eu não possa atribuir ao homem e à humanidade. E, mesmo assim, meu orgulho por ambos é tão grande, que só sinto verdadeiro ódio de uma coisa: do seu inimigo, a morte”.

Tenho para mim que, enquanto leitores, tornamo-nos expostos à esta fórmula a partir do momento em que nos deparamos, pela primeira vez, com as exigências que nos são feitas pelas obras dos nossos escritores preferidos: uma lição que deveríamos levar para a vida.

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