Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Comentários sobre as mulheres incomodam na leitura de Nietzsche

Mesmo em trechos aparentemente absurdos, aprendemos com o filósofo a duvidar das nossas certezas

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Algo que sempre me incomodou bastante na leitura de Nietzsche são os seus comentários sobre as mulheres. Exemplo disso é o que ele diz em "Assim Falou Zaratustra" (1883): "Vais ter com as mulheres? Não esqueças o chicote".

Tamanho é o impacto de quem se depara com esses comentários pela primeira vez que, em "Nietzsche: Filósofo, Psicólogo e Anticristo" (1950), Walter Kaufmann —um dos responsáveis pelo reestabelecimento dos estudos da obra do filósofo nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial— afirma que as opiniões de Nietzsche sobre as mulheres careceriam de valor filosófico, devendo ser tratadas como expressões de um preconceito, ora relacionado às suas experiências de vida, ora à sua leitura de autores como Chamfort, La Rochefoucauld e Schopenhauer.

Há, no entanto, outra maneira de se tratar essa questão, vislumbrando uma ligação de parte desses comentários os projetos de Nietzsche de superação do platonismo e da transvaloração dos valores morais. Quem melhor desenvolve a análise desse tema, por essa perspectiva, é o filósofo brasileiro Oswaldo Giacoia Junior em "Nietzsche e o Feminino" (2002).

Como ponto de partida, Giacoia recorre a um detalhado estudo de "Além do Bem e do Mal" (1886), obra em que, segundo ele, os comentários de Nietzsche sobre o feminino estariam intimamente relacionados a um exercício de desconstrução da metafísica, perdendo, desse modo, "aquela aparência, mantida em outros escritos, de uma questão meramente subsidiária, de concessão a uma discussão da moda ou de um apêndice insólito".

Nietzsche inicia o prefácio dessa obra com a seguinte provocação:

"Supondo que a verdade seja uma mulher — não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar — e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ainda está de pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas".

Ora, tanto esse questionamento quanto a metáfora da verdade enquanto mulher expressam algumas das críticas de Nietzsche às tentativas feitas por vários representantes do cânone ao tentar conformar a verdade aos limites dos seus sistemas de pensamento, quase sempre nos fazendo correr o risco de confundir o que é a verdade com as suas próprias interpretações, como bem coloca Oswaldo Giacoia:

"Ao instituir sistemas globais de interpretação da natureza e da história, oferecendo uma resposta à pergunta pelo sentido da existência, os filósofos dogmáticos acreditavam ter conquistado definitivamente a verdade. E, no entanto, essa foi uma crença ilusória, cuja insubsistência sempre escapou à pouca cautela crítica dos mesmos".

Por todo o livro, Nietzsche oferece-nos alguns exemplos do tipo de dogmatismo filosófico que ele pretende criticar. Por exemplo, na seção 9, ele discute os preconceitos dos filósofos ao longo da história do pensamento, a querer fazer com que enxergássemos a natureza de acordo com um determinado modelo:

"Com todo o seu amor à verdade, vocês se obrigam por tanto tempo, tão obstinadamente, tão rigidamente, a ver a natureza de modo falso, ou seja, estoico, que afinal não a conseguem ver de maneira diversa (...) mas esta é uma antiga, eterna história: o que ocorreu então aos estoicos sucede ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a creditar em si mesma. Ela sempre cria o mundo à sua imagem, ela não consegue evitá-lo."

Assim, ao comparar a verdade com uma mulher, isto é, com algo de humano e de imprevisível, Nietzsche estaria criticando os filósofos pelo que ele acreditava ser uma incapacidade em perceber a verdade enquanto um fenômeno dinâmico e complexo, cuja expressão, segundo ele, não poderia ser capturada de modo objetivo ou totalizante.

Em suma, Nietzsche estaria a ressaltar que as ideias desses filósofos denunciam o que ele considerava ser a falta de traquejo para lidar com o mundo em sua complexidade; do mesmo modo que a presença de uma mulher —e aqui talvez devêssemos pensar em uma femme fatale, como a personagem Carmen, a criação de Próspero Mérimée, que Nietzsche tanto admirava— a revelar a incapacidade do homem em lidar com o sexo oposto.

Enquanto no prólogo de "Além do Bem e do Mal" (1886) a metáfora da verdade-mulher não nos causa constrangimento, o mesmo não pode ser dito sobre os comentários de Nietzsche na sétima parte do livro, intitulada "Nossas Virtudes", especialmente nas seções 231 a 239. Já na seção 234, ele comenta:

"A mulher não entende o que significa o alimento: e quer ser cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante teria descoberto, cozinhando há milênios, os mais importantes fatos fisiológicos, e teria também aprendido a arte da cura".

Comentários desse tipo podem ser interpretados como uma prova inequívoca da misoginia de Nietzsche. No entanto, por mais que isso também seja plausível, permanece igualmente importante buscarmos analisar esse trecho em sua relação com outras partes da obra, como as seções 214 e 215, ambas a estabelecer o tom da discussão sobre a virtude e a ação moral. Por exemplo, em 214, Nietzsche faz um comentário geral sobre as nossas virtudes:

"Nós europeus de amanhã, nós, primogênitos do século XX — com toda a nossa perigosa curiosidade, nossa multiplicidade e arte do revestimento, nossa branda e como que adocicada crueldade de espírito e de sentidos —, teremos presumivelmente, se tivermos virtudes, apenas aquelas que aprenderem a se harmonizar com os nossos mais íntimos e autênticos pendores, com as nossas mais ardentes necessidades: muito bem, busquemo-las então em nossos labirintos!"

O que há de interessante nesta citação é a ênfase de Nietzsche na multiplicidade do indivíduo. Igualmente, na seção 215, essa multiplicidade ressurge enquanto tema, em um dos trechos do livro que considero mais bonitos: "Somos determinados por morais diversas; nossas ações brilham alternadamente em cores distintas, raras vezes são inequívocas — e com frequência realizamos ações furta-cor".

No entanto, essa constatação apenas se mostra aparente quando estamos atentos ao ser humano como indivíduo. No momento em que passamos a falar sobre o ser humano de modo abstrato, como se a ele fosse possível atribuir uma descrição objetiva e universal, Nietzsche, então, pede para que tomemos cuidado, pois:

"O homem objetivo é de fato um espelho: habituado a submeter-se ao que quer ser conhecido [...] o que lhe restar ainda de pessoa lhe parece casual, não raro arbitrário, com frequência perturbador: de tão modo se tornou reflexo de passagem de formas e acontecimentos alheios".

Algo semelhante também ocorre quando Nietzsche analisa a ideia da emancipação da mulher na seção 232: "A mulher quer ser independente: e com tal objetivo começa a esclarecer os homens sobre a ‘mulher em si’ — esse é um dos piores progressos no ‘enfeiamento’ geral da Europa". Pois, segundo Nietzsche, do mesmo modo que "homem objetivo" a tudo espelha e nada consegue ser, a figura da "mulher em si" também não possui uma realidade própria.

Nesse sentido, Nietzsche parece querer provocar em nós, mulheres, a seguinte reflexão: o que será que ganhamos ao tentar seguir o modelo do "homem objetivo", mesmo sabendo que esse modelo é deficiente e nada tem de especial?

O mundo girou. Hoje, finalmente, questionamos esse "homem objetivo". As mulheres não aspiram a uma independência pautada na experiência masculina. O que vejo cada vez mais são mulheres que buscam se realizar enquanto indivíduos humanos, de carne e osso, múltiplos e cheios de contradições. No entanto, esse questionamento permanece importante, nem que seja para nos manter vigilantes em relação ao risco de, em algum momento, nos perdermos a nós mesmas.

Nietzsche é um pensador extremamente difícil, que muitas vezes nos surpreende e assusta por sua linguagem polêmica. A sua leitura nunca é confortável. Mas, diferentemente de muitos outros nomes da tradição, ele não nos ilude com a possibilidade de que podemos desenvolver as nossas reflexões como se estivéssemos alheios aos nossos próprios preconceitos.

Assim, mesmo quando ele escreve algo aparentemente absurdo, aprendemos com Nietzsche a sempre nos colocar em uma posição de dúvida sobre as nossas próprias certezas.

Em tempo, dada a complexidade do tema, impossível de ser abordado em uma única coluna, sugiro a leitura do artigo "Nietzsche e o Feminino", do professor Oswaldo Giacoia Junior.

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