Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Elias Canetti aponta riscos de ser levado por sanha de multidões

Para escritor, pessoas buscam refúgio em turbas para se esquivar de suas próprias vulnerabilidades

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Concluí recentemente a leitura de "A Língua Absolvida" ­(1977), o primeiro dos três volumes da autobiografia de Elias Canetti, pensador europeu de origem judia cuja trajetória de vida confunde-se com a história do século 20, a registrar as transformações, os conflitos e as ideias que definiram algumas das mais importantes preocupações da época; muitas das quais permanecem relevantes para a compreensão do nosso atual cenário político.

Exemplo disso é o que ele escreve sobre as multidões, tema que perpassa toda a obra de Canetti e que encontra a sua mais concentrada expressão em "Massa e Poder" (1960), sofisticado estudo no qual ele reflete sobre o que nos faz sentir, a um só tempo, receosos do toque do outro e ansiosos por nos tornarmos integrantes de uma multidão. Já em "A Língua Absolvida", Canetti mostra que a sua preocupação com esse tema tem origem em algumas das suas mais remotas lembranças.

Nascido em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, em uma grande e próspera família de comerciantes, Canetti desde cedo habituou-se à convivência em ambientes em que se falavam vários idiomas: ladino, búlgaro, alemão, francês, inglês etc. O seu avô paterno, conta-nos o escritor, gabava-se de comunicar-se em 17 línguas.

O escritor búlgaro Elias Canetti - Reprodução

No entanto, Canetti adverte-nos de que tal conhecimento de outros idiomas não era simples vaidade intelectual, pois, em verdade, representava uma questão de sobrevivência:

"Muitas vezes se conversava sobre idiomas; só em nossa cidade eram faladas sete ou oito línguas, e todos entendiam um pouco de cada uma. Apenas as meninas que vinham das aldeias só conheciam o búlgaro, e por isso eram consideradas tolas. Cada um enumerava as línguas que conhecia, e era importante que se dominasse muitas, pois poderia acontecer que com o seu conhecimento se viesse a salvar a própria vida ou a de outros".

A crença de que o nosso conhecimento de algo deve fazer uma diferença no mundo tornou-se uma das marcas da obra de Canetti, tanto por influência da sua mãe, para quem o aprendizado jamais deveria ser encarado como um fim em si mesmo, como através da sua experiência com outros idiomas, consolidada por sua mudança com os pais para a Inglaterra e durante os períodos em que viveu com a mãe e os irmãos mais novos na Áustria e na Suíça.

Assim, não surpreende que, em sua autobiografia, Canetti reflita sobre o comportamento das multidões a partir de algumas das suas primeiras lembranças relacionadas ao aprendizado e ao exercício de línguas estrangeiras.

Um desses episódios remonta ao tempo em que viveu com os pais em Manchester, na Inglaterra, em meio a uma comunidade formada por conterrâneos de Ruschuk. Na ocasião, Canetti percebe que havia se tornado motivo de riso entre os amigos da família por conta do seu forte sotaque britânico ao comunicar-se no francês que estava aprendendo na escola:

"Aquela gente de Ruschuk, que havia aprendido um francês impecável na "Alliance" e agora encontrava dificuldades com o inglês, achava irresistivelmente cômico meu francês com pronúncia inglesa e desfrutava, como uma matilha descarada, a aparição de sua própria fraqueza numa criança que ainda não completara sete anos".

Mais tarde, ao nos contar sobre os seus primeiros anos em Viena e oferecer-nos um testemunho do que se passou na cidade com o estopim da Primeira Guerra Mundial, Canetti descreve a agressão que ele e os irmãos sofreram ao resolverem cantarolar o hino britânico em meio a uma multidão de adultos agitada pelo mais irracional sentimento de patriotismo:

"Como estávamos em meio a uma multidão compacta, isso não podia passar despercebido. De repente vi ao meu redor rostos contorcidos pela ira, mãos e braços que me atacavam. Também meus irmãos, até mesmo o caçula, Georg, receberam algumas das pancadas destinadas a mim, o menino de nove anos".

Individualmente, talvez, essas pessoas não se sentissem em posição de debochar ou até mesmo de agredir uma criança. Pois, no primeiro caso, o que motivou o riso dos adultos foi o ressentimento de cada um deles pela vantagem do menino; ante a precariedade das suas próprias situações enquanto imigrantes e falantes de língua inglesa.

Já no segundo caso, um indivíduo emocionalmente compensado, em razoável domínio das suas faculdades, muito provavelmente não se sentiria ameaçado pela provocação dos garotos; pois seria capaz de perceber que eles não tinham plena consciência da gravidade dos sentimentos de medo e de rivalidade inspirados por uma declaração de guerra.

Nestes e em outros episódios de "A Língua Absolvida", Canetti dá a entender que as pessoas buscam um refúgio na multidão de modo a se esquivar de um exame sobre as suas próprias vulnerabilidades. Afinal, quando estamos aglomerados, as hierarquias e as diferenças que tanto nos incomodam acabam por se desfazerem.

Tornamo-nos como se fossemos um só corpo com a turba, perdemos a consciência das nossas limitações; achamos que somos mais fortes e que estamos muito mais aptos a atingir um objetivo, reagir contra uma ameaça ou combater um reflexo das nossas frustrações.

Em uma multidão, reconfortamo-nos uns aos outros e nos iludimos de que somos de alguma maneira superiores a quem está de fora; dando-nos a impressão de que temos o poder de banalizar o conhecimento e de agredir dissidentes —do mesmo modo que os adultos dos episódios acima agiram com relação a Canetti e aos seus irmãos— sem precisarmos de nos preocupar com a nossa parcela de responsabilidade individual pelo que acontece conosco e pela violência que praticamos.

Os eventos políticos dos últimos anos, bem como a insensibilidade de muitos de nós diante dos desafios e das perdas que sofremos durante esse período de pandemia denunciam o risco que corremos ao nos deixarmos levar pela sanha das multidões.

Pois, embora aglomerações humanas façam parte das nossas vidas, a abranger blocos carnavalescos, torcidas de futebol, movimentos políticos, grupos religiosos e o nosso próprio entendimento enquanto nação, nem sempre os sentimentos que nos atraem para esses círculos refletem algo de positivo.

Talvez seja por isso que, tanto ao relatar esses eventos da sua vida, como ao retratar uma rica variedade de personagens, Canetti nos chame a atenção para uma citação que ele atribui a Charles Dickens, um dos seus escritores prediletos: "A criatura mais ínfima numa multidão é digna de um olhar!".

É somente nesse gesto de atenção ao outro que aprendemos a vencer o temor de que as diferenças entre nós devam, necessariamente, ser enxergadas como uma ameaça a nossa integridade. Ao superar esse medo, paradoxalmente, tornamo-nos cada vez menos ensimesmados e, por conta disso, um pouco mais desconfiados em relação ao apelo das multidões.

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