Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Golem, gigante de terra do folclore judaico, inspira reflexão sobre soluções políticas mágicas

Mito do século 16 indica riscos de nos tornarmos reféns de monstros criados para nos proteger

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Conta-se que, no século 16, o Maharal de Praga, rabino Loew ben Bezalel (c. 1512-1609), teria criado um golem para proteger a sua comunidade das campanhas difamatórias e das perseguições sofridas durante o reinado de Rodolfo 2º (1552-1612), então imperador do Sacro Império Romano-Germânico.

Segundo o folclore e a tradição mística judaica, o golem é uma criatura feita de terra que ganha vida a partir de uma combinação de letras do alfabeto hebraico. O mesmo alfabeto a partir do qual Deus haveria criado o mundo.

Monumento de homem com faixas de metal
Monumento ao Golem, de David Cerný, em Poznan, na Polônia - Patrick H. Lauke/Wikimedia Commons

Em narrativa do século 13 registrada por Gershom Scholem no ensaio "A Ideia do Golem", Ben Sira, o escriba, põe-se a estudar as formulações do Livro da Criação ("Sefer Yetzirá"): um dos mais antigos textos do misticismo judaico. Durante os seus estudos, Ben Sira recorre à ajuda do profeta Jeremias. Ao cabo de três anos, a dupla obtém sucesso na concepção de um homem que, ao deparar-se com os seus criadores, lança a seguinte advertência:

"Deus sozinho criou Adão e, quando quis deixar Adão morrer, apagou o ‘alef’ [letra do alfabeto hebraico] de ‘emet’ [verdade, cuja primeira letra da palavra em hebraico é ‘alef’] e ficou ‘met’ [morto]. É o que vocês devem fazer comigo e não criar outro homem, para que o mundo não sucumba à idolatria [...]. Invertam a combinação de letras e apaguem o ‘alef’ da palavra ‘emet’ sobre a minha fronte".­

Já na Polônia do século 17, o golem aparece em uma história sobre Elias Baal Shem (1550-1583), rabino da cidade de Chelm:

"Entre os judeus poloneses o golem executa toda a espécie de serviços caseiros [...]. O golem de Rabi Elias ficou tão alto que o próprio rabino não conseguia mais alcançar a testa da criatura para apagar a letra ‘alef’. Rabi Elias, então, elaborou um plano, isto é: que o golem, sendo seu criado, deveria tirar-lhe as botas, supondo que, tão logo o golem se abaixasse, conseguiria apagar o ‘alef’. E assim aconteceu, mas quando o golem se desfez em barro, todo o seu peso caiu sobre o rabino e o esmagou".

Essas e outras narrativas sobre o golem ­—como a lenda de que o poeta e filósofo Salomão Ibne Gabirol (c. 1021-1070) teria criado um golem fêmea para lhe servir de ajudante doméstica e, possivelmente, concubina— parecem propor uma reflexão sobre os limites da criatividade humana em atender as nossas necessidades por companhia, auxílio e proteção.

Há quem se utilize da lenda do golem para refletir sobre o nosso atual relacionamento com a tecnologia. Afinal, como assevera Luis Nazario, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), no ensaio "O Golem, o Autômato e Frankenstein":

"Vivemos em um mundo dominado por golens: ninguém mais pode dispensar seus rádios, suas geladeiras, seus automóveis, seus telefones, suas televisões, seus computadores, seus ‘tamagochis’, seus celulares".

Scholem e Isaac Bashevis Singer também propõem semelhantes leituras sobre o mito, a ressaltar as suas semelhanças com os computadores modernos. Já em conferência de 2014 realizada na Universidade Bar-Ilan, em Israel, Moshe Idel, autor de "Golem: Jewish Magical and Mystical Traditions on the Artificial Anthropoid", chama a atenção para a importância do golem nas discussões da bioética sobre as noções de concepção, vida e morte.

São tantas as maneiras encontradas para se pensar o golem que, no comunicado de imprensa do Museu Judaico de Berlim a respeito de uma grande exposição sobre a criatura, encontramos a seguinte observação: "Cada geração produz os seus próprios golems, a espelhar as suas próprias necessidades, ansiedades e esperanças de redenção".

Mas, se enfatizarmos o seu papel de protetor, não fica difícil perceber que o golem de Praga prefigura muitos dos super-heróis criados durante o século 20, ao exemplo de Ben Grimm, o Coisa —personagem de "Quarteto Fantástico"— cuja aparência de monstro de pedra remonta ao próprio golem enquanto gigante de terra ou argila.

Tamanha é a identificação do golem com a figura do super-herói que, como lembra o professor Elcio Cornelsen no ensaio "Os Caminhos do Golem pela Literatura", o escritor brasileiro Moacyr Scliar convoca-o para enfrentar os nazistas ao lado do Sombra e do Homem de Borracha, em "A Guerra no Bom Fim" (1972).

No entanto, ressalto que o tipo de proteção oferecida por um golem não é muito confiável. Na versão de Isaac Bashevis Singer para a lenda envolvendo o rabino Loew, o autor chama a nossa atenção para o fato de que o golem teria sido criado com a finalidade de desempenhar uma única tarefa, devendo retornar ao pó assim que a sua missão fosse cumprida.

Mas, Joseph, o golem, passa a criar problemas a partir do momento em que o rabino insiste em mantê-lo vivo na tentativa de prevenir novas ameaças à comunidade, pois o golem é um gigante incapaz de exercer qualquer outra função de modo autônomo, com o mínimo de perícia e discernimento.

Em texto de 1984 para o jornal The New York Times, Singer discute a atualidade desse personagem e alerta-nos para o fato de que, na maioria das histórias, o golem quase sempre acaba se revoltando contra o seu criador, deixando de ser um instrumento de auxílio e proteção para configurar-se em tormento e ameaça. (Lembremo-nos de HAL 9000, o computador de "2001: Uma Odisseia no Espaço"!)

Neste sentido, Singer comenta que o golem de Praga era uma espécie de "literalista", ou seja, uma criatura incapaz de compreender as nuances de uma fala. Já Joseph Dan, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, vai mais direto ao ponto. Em documentário produzido pela Deutsche Welle, Dan comenta que, em hebraico moderno, a palavra golem é comumente empregada para descrever uma pessoa idiota.

Isto posto, penso que, em algum sentido, a figura do golem extrapola as questões sobre a nossa relação com a tecnologia, mostrando-se igualmente útil em nos fazer refletir sobre como, muitas vezes, as nossas escolhas políticas atuam em detrimento dos nossos próprios interesses.

Ora, será que ao depositarmos as nossas esperanças de redenção em certas figuras, a desejar mantê-las no poder para proteger-nos de possíveis ameaças, não estaríamos, igualmente, correndo o risco de nos tornamos reféns de um golem?

Quando o rabino Loew percebeu que o golem de Praga estava prestes a colocar a comunidade em uma situação ainda pior do que aquela que ele houvera sido criado para combater, deu um jeito de desativar o monstro e trancafiar os seus restos no sótão da sinagoga.

Mais tarde, conta-nos Scholem, um dos sucessores de Loew, o rabino Ezequiel Landau (1713-1793), teria ido examinar os restos do golem: "E, retornando, baixou uma ordem, obrigatória para todas as gerações futuras, pela qual nenhum mortal jamais deveria subir ao sótão".

Quem sabe devêssemos adotar semelhante estratégia com relação a certas figuras, convicções e ideias políticas, cujas perpetuações tendem operar em nosso prejuízo. Afinal, nos textos sobre o golem, fica evidente a lição de que, a longo prazo, não podemos confiar em soluções mágicas para os nossos problemas.

​Para os que se interessam pelo assunto, os ensaios de Luiz Nazario e Elcio Cornelsen estão publicados na coletânea "Os Fazedores de Golems", editada pelos professores Lyslei Nascimento e Luiz Nazario, da UFMG.

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