Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Desconhecidos ensinam que é possível fazer o bem mesmo em situações de risco

Lenda judaica dos 'lamed wufniks', incluídos em lista de seres fantásticos de Borges, lembra que mundo pode melhorar

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Em "O Livro dos Seres Imaginários" (1967), Jorge Luis Borges nos oferece uma série de textos sobre personagens e criaturas fantásticas presentes nas mais diversas culturas. Algumas dessas criaturas, ao exemplo dos dragões, encontram expressão em variados contextos humanos. Outras, como o demônio Keteh Meriri e os golems, pertencem a um folclore específico.

Em coluna de novembro passado, escrevi sobre os golems, os gigantes de argila do folclore judaico, cuja lenda inspirou alguns dos mais célebres super-heróis das histórias em quadrinhos, como Ben Grimm, O Coisa, e Bruce Banner, o Poderoso Hulk.

Na ocasião, comentei que as narrativas sobre esses seres imaginários poderiam nos dar elementos para uma reflexão política, alertando-nos sobre o risco de apostarmos em soluções mágicas para os nossos problemas. Hoje, volto a escrever sobre política em sentido amplo, literatura e folclore judaico, a partir do que Borges relata sobre o mito dos "lamed wufniks":

"Há na Terra, e sempre houve, trinta e seis homens retos cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os lamed wufniks. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um lamed wufkinik, morre imediatamente, e um outro, talvez em outra região do planeta, toma seu lugar, sem suspeitar, esses homens são os pilares secretos do universo. Não fosse por eles, Deus aniquilaria o gênero humano. São nossos salvadores e não sabem".

A expressão "lamed wufniks" vem do iídiche. Ela se refere ao valor numérico das letras hebraicas "lamed" e "vav" que, somadas, formam o número 36. Existem várias interpretações para esse número específico, muitas das quais foram elencadas por Gershom Scholem, filósofo e historiador do misticismo judaico, em ensaio publicado no volume "The Messianic Idea in Judaism" (1971).

Há quem diga que o número 36 tenha origem em um cálculo feito a partir da palavra que traduzimos por "nele" em Isaías, 30:18: "Como são felizes todos os que nele esperam". Pois, em hebraico, a soma das letras que formam tal palavra resulta no número 36. De modo que a mesma passagem poderia ser lida da seguinte forma: "Como são felizes todos aqueles que esperam nos trinta e seis".

Cálculos e elucubrações exegéticas à parte, o que há de interessante na história dos trinta e seis homens retos é a ideia de que a justiça é muitas vezes garantida por pessoas simples, alheias à própria bondade e desconhecidas entre si, cujas virtudes geralmente são expressas de modo paradoxal, em desarmonia com a primeira impressão que possuímos desses indivíduos.

De modo a ilustrar tal paradoxo, Scholem remete-nos a uma narrativa talmúdica do século 3o em que Rabi Abbahu questiona o empregado de um bordel, responsável por contratar e administrar prostitutas, se ele já havia praticado o bem.

Retrato de Gershom Scholem em 1925
Retrato de Gershom Scholem em 1925 - Wikimedia Commons/Reprodução

Em resposta ao rabino, o homem, tido por "pentakaka" —​palavra de origem grega, a significar cinco más ações— comenta que, certa vez, chegou a vender a própria cama e as cobertas para ajudar a uma desconhecida a tirar o marido da prisão, evitando que ela tivesse de se prostituir para sobreviver.

Outra narrativa, dessa vez atribuída ao rabino Lawrence Kushner, nosso contemporâneo, se passa na cidade de Munique durante a ascensão do regime nazista. Uma senhora judia viajava de ônibus quando soldados da SS entram no veículo para conferir a identidade dos passageiros. Assustada, ela comenta a situação com o homem sentado ao seu lado. Este, alemão, levanta-se imediatamente e começa a ralhar com a mulher, chamando-a de tudo e mais um pouco.

Nisso, um dos soldados se aproxima, o homem entrega o documento de identificação e pede desculpas por protagonizar tamanha cena com a esposa, é que ela, uma cabeça de vento, sempre se esquecia de colocar os próprios documentos na bolsa. Resultado, o soldado sorri meio constrangido, confere a identidade do homem e deixa a mulher em paz.

Quem também parece explorar temas que podem remeter aos "lamed wufniks" é a filósofa Hannah Arendt. Em célebre entrevista de 1964 ao programa "Zur Person" apresentado pelo jornalista Günter Gauss, ela comenta quando, em 1933, foi presa em Berlim.

Na ocasião, Arendt havia aceitado o convite da Organização Sionista Alemã para colecionar declarações antissemitas publicadas em revistas especializadas por toda espécie de associação profissional. Esse material, conta-nos a biógrafa de Arendt, Samantha Rose Hill, seria enviado para agências internacionais de imprensa, em uma tentativa de conscientizar a comunidade internacional sobre o perigoso avanço do antissemitismo na Alemanha. Denunciada por um funcionário da Biblioteca do Estado, Arendt é presa —afinal, do que serviriam tantos jornais para uma jovem acadêmica.

Sobre a prisão, Arendt comenta com Gauss que fora poupada graças ao oficial encarregado do seu caso. Ele havia sido recentemente promovido da polícia criminal para uma divisão política e, segundo a filósofa, não sabia exatamente o que fazer com ela:

"Eu deixei a prisão depois de oito dias porque fiquei amiga do oficial que me prendeu [...]. Ele sempre comentava: ‘Normalmente sempre tenho alguém diante de mim e basta checar os arquivos para saber do que se trata. Mas o que faço com você?’ [...]. ‘Eu coloquei você aqui. Vou tirar você daqui’ [...]. O homem que havia me prendido tinha o semblante aberto e decente. Eu confiei nele e pensei que com ele eu teria maiores chances do que com um advogado que, por sua vez, estaria com medo".

Essas e outras histórias de coragem e protagonismo individual, fazem com que eu me questione se os "lamed wufniks" deveriam realmente integrar a lista de seres fantásticos idealizada por Borges. Afinal, entre as mais extraordinárias criações da nossa imaginação, os "lamed wufniks" talvez sejam uma das que mais encontram amparo na experiência.

Muitos de nós já contaram com a ajuda de desconhecidos ou conhecem pessoas comuns —quem sabe até mesmo um ou dois vizinhos— que não se deixam seduzir por abstrações intelectuais, preconceitos e fetiches ideológicos, optando por agir moralmente e fazer o bem mesmo em situações de risco.

Essas pessoas são os nossos "lamed wufniks" e estão aqui para lembrar-nos de que as coisas podem, sim, melhorar. Tudo só depende de sermos capazes de fazer a nossa parte. Pois, uma coisa é certa: "Quando passar o tufão, não mais se encontrará o ímpio, mas os justos continuarão sendo o sustentáculo do mundo" (Provérbios 10:25).

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