Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
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A história de um livro pode ser tão interessante quanto o seu conteúdo

Livro de Hannah Arendt envolve ascensão do nazismo, guerra mundial e três continentes

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A história de como um livro foi escrito e do tempo que levou até ele chegar em nossas mãos pode, muitas vezes, ser tão interessante quanto o seu conteúdo. Quase todo leitor conhece uma obra cuja existência parece ter sido marcada por alguma espécie de drama ou de aventura; ao exemplo dos textos de Franz Kafka que foram preservados por Max Brod, ou de alguns dos manuscritos de Friedrich Nietzsche que precisaram passar por um processo de reedição ao se ter comprovado que eles haviam sido modificados pela irmã do filósofo.

Existem também aqueles livros que foram escritos durante períodos de crise política ou de guerra, no meio de campos de batalha ou dentro de prisões. Livros que precisaram ser carregados na forração de vestimentas, escondidos entre as fendas de uma parede ou despachados para outras partes do mundo e que só foram reencontrados muitos anos depois nos mais inusitados lugares.

O livro que comecei a reler na última semana passou por algumas dessas situações inesperadas até ser finalmente publicado, cerca de vinte anos após sua finalização. É que a trajetória de "Rahel Varnhagen: A vida de uma Judia" (1957), de Hannah Arendt, envolve a ascensão de um regime totalitário, uma guerra mundial e três continentes.

A escritora e filósofa alemã Hannah Arendt (1909-1967) em retrato de 1944 em que aparece deitada e com a cabeça apoiada em parede.
A escritora e filósofa alemã Hannah Arendt (1909-1967) em retrato de 1944 - Fred Stein

Quando, em 1929, Arendt começou a trabalhar no manuscrito de "Rahel", o clima político da Alemanha passava a se mostrar cada vez mais hostil às minorias, colocando em xeque o mito de que entre judeus e alemães existiria uma espécie de simbiose, e que a partir do final do século 19 -principalmente com a fundação do Império Alemão em 1871- os judeus haviam sido finalmente incorporados àquela sociedade.

Assim, o que havia tido início como uma pesquisa acadêmica sobre o romantismo alemão tornou-se a biografia de uma mulher através da qual Arendt se debruçou sobre o passado na tentativa de investigar as falhas no processo de integração dos judeus alemães ao longo dos séculos 18 e 19, ao mesmo tempo em que buscava compreender a gênese da situação política que ela mesma vivenciava, enquanto judia, em um país cada vez mais dominado pelo antissemitismo.

Nessa biografia, Arendt conta a história de Rahel Varnhagen (Levin), responsável por um dos mais importantes salões literários de Berlim na virada para o século 19. Esses salões eram espaços de experimentação social em que intelectuais e artistas -fossem homens, mulheres, judeus ou cristãos- conviviam, em aparente harmonia, com membros da nobreza prussiana a partilhar de uma atmosfera de troca de ideias.

Considerada uma figura marcante do universo literário alemão do século 19, Rahel deixou uma produção quase exclusivamente composta por uma vasta correspondência na qual ela costumava combinar reflexões sobre a sua vida interior com relatos de viagem e elocubrações sobre textos filosóficos e literários. Para se ter uma ideia, as cartas de Rahel faziam tanto sucesso que muitas chegavam a ser copiadas e distribuídas entre os seus contemporâneos.

No entanto, Arendt ressalta o fato de que, embora muitos interpretassem a história de Rahel como um exemplo positivo do diálogo cultural entre judeus e alemães, ainda assim, a vida dessa extraordinária personagem -autora, inclusive, de ensaios sobre a obra de Goethe- havia sido irremediavelmente marcada pela solidão e pelo desamparo. Sensações muitas vezes provocadas pela postura antissemita dos seus pretendentes e dos frequentadores do seu salão, que somente aceitavam Rahel até o ponto em que a sua origem judia deixava de ser vista como algo de exótico para se transformar em algo de inconveniente.

Ao fugir da Alemanha em 1933, Arendt levou consigo o manuscrito que ela havia iniciado sobre a vida de Rahel. Durante o tempo em que passou como refugiada na França, Arendt contou com o incentivo do segundo marido, Henrich Blücher, e do amigo Walter Benjamin, para concluir o texto. Foi nesse período em que ela escreveu os dois últimos capítulos do livro. Em Paris, quem também se interessou pelo projeto de Arendt foi o filósofo e historiador do misticismo judaico Gershom Scholem, que, mais tarde, veio a encontrar uma cópia do manuscrito de Arendt em Jerusalém.

O documento, por sua vez, havia chegado em Israel por intermédio de Käthe Fürst, esposa de Ernst Fürst, um dos primos de Arendt que havia migrado para aquela região em 1935. Diante de tantos deslocamentos, o manuscrito havia sido dado por perdido e Arendt somente conseguiu reavê-lo em 1945, quando já estava morando em segurança nos Estados Unidos.

Com o texto finalmente em mãos, Arendt esforçou-se em publicá-lo. Mas, na ocasião, dois dos seus principais interlocutores tiveram dificuldades com o estilo da obra. O antigo orientador de Arendt, o filósofo Karl Jaspers, reclamou da maneira como ela havia desenvolvido determinados argumentos. Já o escritor Hermann Broch comentou que a redação de Arendt era abstrata e que ela havia deixado de fora informações importantes para uma biografia, ao exemplo de datas e outras referências temporais.

De fato, "Rahel" é uma obra biográfica densa, singular e desnorteante. O efeito da sua leitura é o de um jogo de espelhos que ora reproduz a vida da protagonista, ora retrata muitas das preocupações intelectuais e políticas que acompanharam Arendt ao longo de toda a sua trajetória intelectual. Tratando-se, portanto, de um livro desafiador e fundamental para todos aqueles que se propõem a estudar o desenvolvimento do pensamento arendtiano.

A obra foi finalmente publicada em 1957 por iniciativa do Instituto Leo Baeck, em Nova York. Mas, para a surpresa de Arendt, essa edição de "Rahel" haveria de ser uma tradução para o inglês do texto original em alemão, o que, de certa forma, adiciona mais uma curiosa reviravolta à história deste livro, que somente veio a ganhar a sua primeira edição crítica já na década de 1990, graças aos esforços da professora Liliane Weissberg, responsável por reeditar o material levando em consideração, entre outras coisas, a recuperação de algumas das notas que Arendt havia planejado incorporar ao texto.

Ao tomarmos conhecimento de todos esses elementos que compõem a história de "Rahel", a sensação que temos é a de que a saga de um livro nem sempre chega ao fim no instante da sua publicação, podendo estender-se no tempo e no espaço e a fazer com que outras pessoas -inclusive nós mesmos, simples leitores- participem dos esforços de um autor.

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