Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Devemos privilegiar o contexto ou o conteúdo ao interpretar obras históricas?

Shakespeare opera jogo de inversões em 'O Mercador de Veneza', dificultando a compreensão do antissemitismo na peça

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Em recente troca de mensagens com o meu amigo Charles, discutimos se "O Mercador de Veneza" (1600) seria uma obra antissemita ou seria uma obra em que o antissemitismo é denunciado em toda sua perversidade; assim, permitindo-nos uma maior reflexão sobre o tema.

Essa discussão, por sua vez, levou-me a pensar demoradamente sobre o que deve ser levado em consideração ao interpretarmos um documento de uma outra época que ainda permanece relevante para o entendimento de quem somos e de como agimos culturalmente. Ora, será que, em nossos esforços interpretativos, deveríamos privilegiar o contexto histórico e a intenção do seu autor, Shakespeare, ou será que deveríamos nos ater pura e simplesmente ao que está no papel?

Retrato do escritor inglês William Shakespeare, pintado em 1610
Retrato do escritor inglês William Shakespeare, pintado em 1610 - Leon Neal/AFP

Uma das principais dificuldades que encontramos ao tentarmos refletir sobre a função do antissemitismo em "O Mercador de Veneza" é a de não termos acesso às intenções do seu autor. Outra, é a de não bastar reconstruir o contexto histórico em que o texto se insere para finalmente vislumbrarmos o seu sentido, como se fôssemos infalíveis em nossa análise da história e não corrêssemos o risco, seja de reduzir o papel do autor ao de um simples porta-voz dos preconceitos de sua época, seja de projetarmos no passado elementos de como um mesmo fenômeno social passou a ser encarado.

De fato, diante de um texto como "O Mercador de Veneza", nem uma abordagem histórica, nem uma abordagem que tenha por objetivo investigar as intenções de um autor mostram-se suficientes na hora de tentarmos emitir qualquer opinião, devendo ser complementadas por uma abordagem que leve em consideração as especificidades próprias do texto.

"O Mercador de Veneza" conta a história de Shylock, um judeu que trabalha como agiota e enfrenta, cotidianamente, o preconceito dos comerciantes cristãos com os quais costuma fazer negócio, havendo, portanto, guardado uma terrível mágoa por todas as humilhações sofridas nas mãos de gente como o seu rival, o mercador Antônio, que recorre a ele para fazer um empréstimo de 3.000 ducados em nome de um amigo, Bassânio.

Simplesmente por Shylock ser judeu, Antônio o detesta, mas opta por fazer negócio com ele para ajudar Bassânio a impressionar uma jovem herdeira, Pórcia. Shylock, por sua vez, aparenta enxergar na transação rara oportunidade de confrontar o seu adversário. Assim fica acordado entre as partes que, caso Antônio não consiga pagar o empréstimo, Shylock poderá exigir que uma libra de carne seja extraída do seu corpo.

O ator Al Pacino em cena de 'O Mercador de Veneza'
O ator Al Pacino em cena de 'O Mercador de Veneza' - Steve Braun/Sony Pictures Entertainment

O fato de Shylock haver sido caracterizado como avarento, obstinado e vingativo, não deixa qualquer dúvida de que Shakespeare utilizou-se de estereótipos antissemitas para construir o personagem. A própria libra de carne mencionada por Shylock é uma referência ao fato de que os cristãos da época entendiam a circuncisão ritual dos judeus como uma espécie de castração.

Mas à medida que avançamos na trama, percebemos que a caracterização de Shylock ganha em complexidade ao passo que a suposta superioridade dos personagens cristãos é posta em xeque.

Se prestarmos atenção à história, perceberemos que o acordo feito entre Shylock e Antônio foi inicialmente selado em tom de provocação -"assinai-me o documento da dívida, no qual, por brincadeira, declarado será (...)"- pois nenhum dos dois poderia prever que Antônio estaria arriscado a perder a sua frota em uma série de acidentes, inviabilizando, dessa forma, o pagamento da dívida.

Perceberemos, também, que além de ser um homem de negócios, Shylock é viúvo e pai de uma única filha, Jéssica, a quem ele tenta alertar sobre o comportamento dos venezianos. Ela, no entanto, trai a confiança do pai ao furtar um caixote de dinheiro e ao vender um anel de estimação que pertencera a sua falecida mãe para fugir com Lourenço, por quem está apaixonada. Logo após tomar conhecimento da traição da filha, Shylock é humilhado por Salânio e Salarino. Em seguida, Salarino pergunta se ele sabe o que teria acontecido com uma das embarcações de Antônio. Somente a partir desse momento -ainda sob o impacto do que Jéssica fez- é que Shylock começa a insistir na execução do seu acordo com Antônio.

Por sua vez, o que aparenta mover Bassânio e Antônio não são única e simplesmente os laços de amor ou amizade que eles professam da boca para fora, mas questões intimamente relacionadas à riqueza e à manutenção de vantagens sociais.

Ao concordar em pedir o empréstimo para Shylock, Antônio intenta garantir a manutenção do seu vínculo afetivo com Bassânio, que, por sua vez, enxerga no casamento com Pórcia uma oportunidade de refazer o seu patrimônio, ou seja, ambos são os culpados do mesmo vício projetado na figura de Shylock.

Aqui vale ressaltar a provocação de Pórcia durante a audiência de julgamento do contrato entre Shylock e Antônio, quando a personagem insinua uma inversão de papéis entre os dois homens. Afinal, qual deles é o mercador? Quem é o judeu?

Tenho para mim que tal provocação se aplica à peça como um todo, como se a trama de Shakespeare fosse, em verdade, uma espécie de câmara escura, na qual tudo o que possa haver de comum entre os personagens passa por um processo de inversão: em Shylock, a melancolia de Antônio, o seu desprendimento e o amor que ele sente por Bassânio são transformados em ira, avareza e em possessividade com relação à sua única filha. Enquanto em Jéssica, a inteligência e a obediência filial que associamos a Pórcia são transformadas em esperteza e traição. Isso se faz evidente ao observarmos que os temas dos caixotes e dos anéis se repetem para as duas mulheres, com significados distintos.

A maior dificuldade de chegarmos a uma conclusão sobre a função do antissemitismo em "O Mercador de Veneza" repousa na sensação de que o texto de Shakespeare opera um incessante jogo de inversões, sem permitir que o leitor encontre na peça algo que possa utilizar de modo inequívoco para justificar as suas próprias crenças.

Faz-se importante ressaltar que, mesmo diante do antissemitismo das personagens, da conversão forçada de Shylock e das dúvidas levantadas sobre o caráter de Jéssica por ela ser filha de um judeu, ainda assim, a principal exigência que o texto aparenta fazer aos seus leitores é a de que a humanidade do outro é imprescindível e deve ser reconhecida por expressar o comum de todos. Nesse sentido, protesta Shylock:

"Sou um judeu. Então um judeu não possui olhos? Um judeu não possui mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito".

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