Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Podemos confiar nas nossas lembranças?

Autores indicam que a memória, mesmo de eventos concretos, pode ser distorcida e até inventada

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Em 1979, a historiadora Janaína Amado tomava depoimentos orais sobre a Revolta do Formoso, movimento de posseiros ocorrido no estado de Goiás entre as décadas de 1950 e 1960, oportunidade em que conheceu Fernandes, natural de Uruaçu, nascido em meados dos anos 1920. Para ela, seu testemunho pareceu realizar "tudo o que um historiador poderia desejar de uma primeira entrevista de pesquisa."

Durante as sessões de entrevista que, ao todo, contabilizaram 16 horas de gravação, Amado registrou que Fernandes "exibiu memória prodigiosa, recordando-se, em minúcias, até de acontecimentos aparentemente sem importância; emitiu sobre todos os temas opiniões firmes, às quais não faltava excelente senso de humor. E se mostrou identificado com a cultura popular, recitando quadrinhas e provérbios, entoando canções, exibindo passos de dança e descrevendo em detalhes vestimentas, etiquetas e costumes da região".

Gravador - Adobe Stock

No entanto, conforme a historiadora dava prosseguimento à pesquisa, ela acabou descobrindo que nenhuma das informações obtidas através de Fernandes eram passíveis de confirmação:

"Alguns episódios citados por Fernandes realmente haviam acontecido, porém em outros contextos e épocas. Muitas das pessoas referidas por ele eram reais; as descrições de suas características físicas e morais, porém, assim como os papéis que elas haviam desempenhado, não coincidiam com os fornecidos por outros informantes e documentos".

Em artigo de 1995 para a revista História, da Unesp, Amado comentou a frustração que sentiu ao comprovar que nada do que Fernandes havia dito poderia ser utilizado em seu trabalho. Ainda assim, ao concluir a pesquisa sobre a Revolta do Formoso, ela sentiu necessidade de escutar as gravações uma vez mais, mesmo que somente para se divertir com a formidável narrativa elaborada pelo seu entrevistado.

Foi então que Amado começou a reparar nas semelhanças entre o depoimento de Fernandes e uma das mais extraordinárias obras da literatura universal, o romance "Dom Quixote de La Mancha", de Miguel de Cervantes.

A partir disto, ela descobriu que o "Quixote" era o livro predileto do seu entrevistado e que o romance havia desempenhado um importante papel formativo na vida dos habitantes de Uruaçu:

"[Fernandes] possuía o volume desde 1942, ano em que herdara do avô, que, por sua vez, o encomendara a um mascate, que o comprara no Rio de Janeiro. Não apenas Fernandes, mas boa parte da população do município de Uruaçu, nascida antes de 1950, conhecia o Quixote; muitos lembram-se de ter escutado a história ou parte dela, contada por alguém mais velho".

Em 1986, ao entrevistar moradores idosos de Uruaçu, Amado tomou conhecimento que, até meados da década de 1950, as pessoas da cidade tinham o costume de ler ou mesmo de narrar as aventuras do Quixote umas para as outras. Nessas ocasiões, a professora relata que a plateia participava ativamente, inclusive, relacionando passagens da obra de Cervantes ao que acontecia em suas vidas.

Essas informações fizeram com que Amado reavaliasse a entrevista de Fernandes, levando em consideração os aspectos simbólicos daquela narrativa, a refletir sobre a problemática relação entre memória e verdade histórica. Afinal, até que ponto podemos confiar nas nossas lembranças como o que realmente aconteceu no passado?

Quem também escreve sobre isso é o médico e escritor Oliver Sacks. Em ensaio de 2013 para a New York Review of Books, ele comenta a dificuldade que teve para certificar-se de determinados eventos durante a escrita de "Tio Tugstênio: Memórias de uma Infância Química" (2001):

"Eu reconhecia que devia ter esquecido de muita coisa, mas supunha que as memórias que eu tinha — principalmente aquelas que eram muito vívidas, concretas e circunstanciais — eram essencialmente válidas e confiáveis. Foi um choque, para mim, descobrir o contrário".

Em "Tio Tungstênio", Sacks conta que, durante um dos bombardeios alemães à cidade de Londres, uma bomba de termite que caíra no fundo da casa dos seus pais pegou fogo, emitindo um calor extraordinário: "Meu pai tinha uma bomba-d’água portátil, e meus irmãos levavam-lhe baldes cheios, mas a água parecia inútil contra aquele fogo infernal — na verdade, fazia com que ardesse ainda com mais fúria."

Já no ensaio, Sacks revela que, algum tempo depois de haver publicado o livro, um dos seus irmãos, Michael, comentou que ele não poderia ter lembrança daquele incidente porque, na época, ambos estavam fora da cidade. Ora, Sacks não havia testemunhado a explosão. O que realmente aconteceu, no entanto, foi que os meninos receberam uma carta do irmão mais velho, David, relatando o ocorrido nos mínimos detalhes e o autor ficara impressionado a ponto de incorporar aquela experiência.

Ao refletir sobre esse tema, Sacks menciona uma série de outros episódios que envolvem personalidades da política e da literatura, ao exemplo do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan, que, durante uma entrevista, emocionou-se ao relatar uma história de guerra que, em realidade, era uma cena do filme "A Wing and a Prayer" (1944) e do poeta inglês Samuel Coleridge, que, em sua "Biographia Literaria" (1817), transcreve trechos inteiros do seu filósofo predileto, Friedrich Schelling.

Ao contar essas histórias, Sacks tem por objetivo nos conscientizar de que a memória é dialógica e que, por isso mesmo, ela pode surgir tanto das nossas experiências diretas quanto a partir da nossa interação com outras pessoas e do nosso envolvimento com as mais diversas criações do espírito humano, como deixa claro o caso de Fernandes, o Quixote brasileiro, relatado pela professora Janaína Amado.

Além disso, a memória também pode ser alterada, corrigida, expandida ou até mesmo inventada. Para Sacks, sozinhos, não temos como distinguir entre memórias falsas e verdadeiras, pois, aparentemente, o cérebro humano reage do mesmo modo aos estímulos provocados por ambas. Assim, necessitamos de alguma confirmação externa daquilo que guardamos em lembrança.

Sacks também chama atenção para o fato de que a nossa experiência do mundo é subjetiva. Isto é, pessoas diferentes vivem um mesmo evento de modo distinto, a partir de perspectivas dispares, o que, por sua vez, acaba influenciando a maneira como cada indivíduo passa a lembrar o que realmente teria acontecido.

Segundo o médico, a boa notícia é que, apesar de dependermos de uma memória tão cheia de falhas e até mesmo sugestionável, ainda assim, aberrações não são comuns e quase sempre podemos confiar naquilo que lembramos.

Por fim, ao explorar o tema da memória, os textos de Sacks e Amado também deixam clara a centralidade da narrativa em nossas vidas e na constituição das nossas identidades. Algo que, por sua vez, trouxe-me à lembrança o volume de ensaios "O Álbum Branco" (1979), de Joan Didion, no qual ela escreve:

"Interpretamos o que vemos, selecionamos o que funciona melhor entre múltiplas escolhas. Vivemos, sobretudo se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa para imagens discrepantes, pelas ‘ideias’ com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria que constitui nossa experiência real."

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