Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Filosofia e literatura conversam quando arte narrativa ajuda autores a expor ideias

Leitura de Kafka por Hannah Arendt mostra que bons escritores são aqueles com que sentimos necessidade de diálogo

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São muitos os pensadores do século 20 —a exemplo de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Iris Murdoch, Martin Heidegger, Walter Kaufmann, Stanley Cavell e Martha Nussbaum— cujas obras, de alguma maneira, operam um diálogo entre a filosofia e a literatura.

Para mim, no entanto, ainda que essa lista seja composta por verdadeiros gigantes, uma das filósofas que melhor soube conversar com a literatura foi Hannah Arendt.

Arendt escreveu com propriedade sobre vários dos seus autores prediletos, como o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht e a romancista Isak Dinesen —pseudônimo de Karen Blixen—, desenvolvendo textos de estilo marcadamente ensaístico, ou seja, reminiscente do diálogo dela consigo mesma; esforçando-se em destacar o importante papel que a arte narrativa desempenha na exposição das nossas ideias, como se quisesse nos chamar a atenção para o fato de que, para compreendermos o mundo, precisamos saber contar histórias.

Arendt também esteve envolvida em outras atividades relacionadas ao universo da literatura. Assim, no pós-guerra, ela, que havia deixado a Europa como refugiada, voltou diversas vezes ao continente para recuperar tesouros culturais judaicos em países ocupados pelas forças do Eixo. E, entre esses tesouros —como registra Samantha Rose Hill, biógrafa de Arendt— estavam cerca de 1,5 milhões de livros e mil rolos de Torá.

Além disto, durante os seus primeiros anos nos Estados Unidos, Arendt trabalhou para a editora Schocken Books, onde, além de sugerir a publicação de autores como Bernard Lazare e de travar amizades com o romancista Hermann Broch e o poeta Randall Jarrell, acabou se tornando uma das responsáveis pela edição dos diários de Kafka, outro dos seus autores prediletos: oportunidade em que aproveitou para refletir sobre a obra do escritor no ensaio "Franz Kafka - Uma Reavaliação" (1944).

Tanto nos textos sobre Brecht e Dinesen como nesse ensaio sobre Kafka, Arendt nos transmite a impressão de que os bons escritores são aqueles com quem sentimos necessidade de nos manter em diálogo; ainda que não tenhamos qualquer certeza de que eles estejam certos ou errados naquilo que propõem.

Pois, o que realmente devemos levar em conta ao optarmos por suas leituras é o fato de que, a partir da nossa reflexão sobre o que eles escreveram, nos tornamos cada vez mais aptos a expressar os nossos pensamentos.

Assim, não é por acaso que muitos dos autores prediletos de Arendt marquem presença em momentos distintos da sua obra. Kafka, por exemplo —além de ser o tema de "Uma Reavaliação"—, reaparece em outros dos seus textos, tal como "O Judeu Como Pária: uma Tradição Oculta" (1944), "A Quebra entre o Passado e o Futuro" (1961) e "A Vida do Espírito" (1977), a permitir com que ela elabore reflexões diversas sobre o papel da burocracia na sociedade moderna, a questão judaica e a temporalidade.

Um dos motivos pelos quais a relação de Arendt com a obra de Kafka aparenta ser tão longa e produtiva encontra explicação na própria maneira como ela caracteriza a escrita do autor.

Em "Uma Reavaliação", Arendt sugere que o texto de Kafka representa uma espécie de modelo estrutural de expressão da realidade, como a planta de um imóvel, que precisamos conhecer para prever a sua solidez.

Segundo a autora, a sensação de irrealidade que experimentamos a partir da leitura das obras de Kafka como "O Processo" (1925) e "O Castelo" (1926), dá-se pelo fato de que, muito mais do que simplesmente evocar os nossos sentidos, estes romances são, em verdade, frutos de uma experiência de pensamento que expõe —da mesma maneira que o projeto de uma casa— a mais precisa estrutura dos acontecimentos:

"É claro que, comparado a uma casa real, um projeto é muito irreal; mas, sem ele, a casa não existiria, e ninguém conseguiria identificar os alicerces e as estruturas que lhe permitem ser uma casa de verdade [...]. Os projetos só são compreendidos por quem se dispõe e consegue entender com a imaginação as intenções dos arquitetos e a aparência que terá o imóvel".

Ao comentar sobre a infernal máquina burocrática descrita por Kafka em "O Processo", Arendt chama atenção para o fato de que, em momento algum, o autor aparentou alimentar a pretensão de que a sua criação literária devesse ser compreendida como uma verdade profética.

Assim, Arendt esclarece que tudo aquilo que percebemos na obra de Kafka como sendo uma espécie de revelação, nada mais é do que um reflexo da inegável perspicácia do autor, ao desenvolver uma análise densa e precisa sobre aquelas estruturas que vieram à tona a partir de algumas das mais terríveis experiências políticas do século 20; algumas das quais, Arendt comenta, foram até mesmo capazes de superar os próprios absurdos imaginados por Kafka:

"A geração dos anos 1940, e sobretudo quem teve a duvidosa vantagem de viver sob o regime mais terrível já criado pela história, sabe que o terror de Kafka representa adequadamente a verdadeira natureza dessa coisa chamada burocracia —a substituição do governo pela administração e das leis por decretos arbitrários".

Ainda segundo Arendt, a obra de Kafka se insurge contra a mentalidade vigente na Europa do entreguerras, alertando-nos para a ameaça que certas ideias de cunho determinista representam à manutenção da dignidade do homem.

Deste modo, embora a formação da máquina burocrática tenha sido um dos principais temas analisados por Kafka, Arendt adverte-nos para o fato de que não devemos cometer o erro de achar que o autor estivesse de algum modo bastado por haver sido capaz de desvendar os seus mais intrínsecos mistérios daquele fenômeno:

"[Kafka] queria construir um mundo de acordo com as necessidades e dignidades humanas, um mundo onde as ações do homem são determinadas por ele mesmo; guiado por leis humanas e não por forças misteriosas que emanam do alto e das profundezas. Além disso, o seu desejo mais intenso era fazer parte de um mundo desses —ele não estava preocupado em ser um gênio ou a encarnação de qualquer tipo de grandeza".

Neste sentido, Arendt afirma que uma das mais valiosas contribuições de Kafka está em mostrar que podemos, sim, tentar redimir as estruturas de um mundo em pandarecos, assombrado pela burocracia, tal qual um imóvel infestado de cupins, que aos poucos precisa ser reconstruído:

"[Kafka] apresentou a imagem, a figura suprema, do homem como modelo de boa vontade, do homem como fabricator mundi, que pode eliminar as construções malfeitas e reconstruir o seu mundo. E como esses heróis são apenas modelos de boa vontade, permanecendo no anonimato, na abstração genérica, mostrados apenas na função que pode ter a boa vontade nesse nosso mundo, os seus romances parecem ter uma singular atração, como se ele quisesse dizer: este homem de boa vontade pode ser qualquer um, talvez até mesmo você ou eu".

Para os interessados no tema, recomendo a leitura do artigo "Franz Kafka lido por Hannah Arendt: Cultura, Formação e Política", de Daiane Eccel, publicado em 2019 na Revista de Filosofia Aurora.

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