Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Por que a literatura pode se perder ao ser alvo de exigências ideológicas

Isaac Bashevis Singer defende, em ensaios de nova coletânea, que todo escritor é uma espécie de dissidente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Old Truths and New Clichés" bem que poderia ser o título de um ensaio sobre a nossa época, a ressaltar como nos deixamos levar por falsas polêmicas e lugares-comuns, em detrimento do que realmente importa. No entanto, trata-se de uma recém-lançada coletânea de textos de Isaac Bashevis Singer (1903-1991), escritor de língua iídiche e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1978.

Singer se tornou conhecido por contar histórias que remontam à vida dos judeus poloneses antes da catástrofe do século 20, muitas das quais revelam o seu profundo conhecimento do folclore, dos costumes e das crenças de segmentos ortodoxos daquela população.

Homem com camisa branca e livros no colo
Retrato de Isaac Bashevis Singer em 1969 - Israel Press and Photo Agency (I.P.P.A.) / Dan Hadani collection, National Library of Israel/Wikimedia Commons

Ele é autor de romances, entre os quais destaco "Satã em Gorai", sobre o qual já tratei em uma coluna anterior, livros para crianças, como "O Golem", memórias, ao exemplo de "No Tribunal do Meu Pai", no qual oferece um precioso registro da sua infância em Varsóvia, e uma infinidade de contos, muitos dos quais foram publicados em coleções como "Breve Sexta-Feira" e "Uma Coroa de Penas".

Biógrafos de Singer costumam dizer que ele trabalhava incessantemente, sempre a carregar consigo um bloco de notas no qual pudesse rabiscar alguma coisa, além de supervisionar a tradução ou de realizar a edição dos seus próprios textos, inicialmente publicados em veículos da imprensa iídiche norte-americana, como o jornal Jewish Daily Forward —o Forverts—, no qual ele passou a trabalhar a partir do início dos anos 1940, algum tempo após a sua chegada aos Estados Unidos.

Fora isso, a partir da década de 1950, quando a fama finalmente bateu à sua porta, graças à publicação de um dos seus contos, "Gimpel, o Bobo", pela revista Partisan Review e, mais tarde, ao receber o Nobel de Literatura, Singer passou a ser convidado para ministrar cursos, proferir palestras e conceder entrevistas sobre os mais variados temas relacionados aos universos da literatura e do judaísmo.

A ideia de se publicar uma coletânea de ensaios de Isaac Bashevis Singer é antiga, havendo, em determinado momento, partido do próprio autor. No entanto, ela foi postergada por tempo indeterminado e jamais teria saído do papel não fosse a dedicação de David Stromberg em convencer o filho de Singer, Israel Zamir, da importância do projeto.

Em entrevista para o Times of Israel, Stromberg explica que o seu desejo de editar tal coletânea havia surgido de uma viagem de pesquisa aos arquivos de Singer em Austin, na Universidade do Texas. Ele comenta que ao examinar as 176 caixas do acervo, ficou surpreso em notar que alguns desses ensaios já haviam sido editados e traduzidos pelo próprio autor.

Por fim, sugere que, talvez, esse material ainda não tivesse recebido a devida atenção tanto em razão da imagem que Singer construíra de si enquanto contador de histórias, como em virtude do período em que esses documentos estiveram fora do alcance de pesquisadores, já que organização dos seus arquivos levou quase uma década para ser concluída.

Resultado de um trabalho que teve início em 2014, a coletânea organizada por Stromberg é composta de 19 ensaios agrupados em três seções que refletem alguns dos principais interesses de Bashevis Singer, entre eles literatura e escrita, iídiche e judaísmo, memória e filosofia.

Boa parte do que é tratado nesses textos já é conhecido por estudiosos da obra do autor, sobretudo através das suas entrevistas, como a célebre conversa com o jornalista Richard Burgin, publicada em 1985 pela editora Doubleday. No entanto, vale a pena conferir o modo como a escrita de Singer se adapta ao gênero ensaístico, a comprovar sua versatilidade enquanto escritor.

Ainda nesse sentido, chamo atenção para a primeira parte do livro, na qual estão reunidos sete textos de crítica literária, nos quais Singer escreve com destreza sobre grandes nomes da literatura europeia, como Balzac, Flaubert, Tolstói e Dostoiévski, além de se mostrar atento ao que estava sendo produzido na época, nos Estados Unidos e no mundo, tanto em termos de literatura quanto de crítica.

Aqui, muito mais que nas entrevistas, fica claro o que Singer entende por literatura e pela relação que esta deve guardar com outras áreas do conhecimento, ao exemplo da psicologia, da sociologia, da filosofia e do jornalismo. Assim, no ensaio que empresta título à coletânea, Singer chama a atenção do leitor para o fato de que a literatura deve ser informativa, mas que os escritores não podem se enganar, achando que alguém vai ler um romance na tentativa de acumular conhecimento sobre determinado assunto:

"As grandes obras literárias contêm elementos de psicologia e de sociologia, mas ninguém lê Tólstoi para conhecer a questão agrária na Rússia, ou ‘Crime e Castigo’ para aprender sobre psicologia criminal. Os capítulos de ‘Anna Karenina’ e ‘Guerra e Paz’ nos quais Levin ou Pierre discutem os problemas dos camponeses russos são as partes mais chatas desses romances. [Por sua vez] ‘Crime e Castigo’ nos confere acesso a psicologia de um criminoso específico, de um caso único na história da criminologia. Raskólnikov não é um arquétipo, mas um personagem, e por meio do seu comportamento aprende-se muito pouco sobre a criminologia em geral".

Tanto aqui quanto em outros ensaios do livro, Singer enfatiza que a literatura deve se preocupar em expressar o que é particular a cada indivíduo e que a arte literária corre o risco de se perder a partir do momento em que críticos e leitores passam a exigir do autor qualquer espécie de conformidade intelectual ou ideológica.

Singer ainda reclama que o autor deve ser livre para experimentar, sendo, por isso mesmo, uma figura que se coloca em permanente conflito com o seu próprio meio, pois todo bom escritor seria uma espécie de dissidente.

Essa lição faz-se presente em todos os textos da coletânea e talvez surpreenda aqueles que até agora tenham se aproximado da sua obra de modo ingênuo, como se o autor não passasse de uma espécie de porta-voz da tradição judaica do Leste Europeu, principalmente do ambiente hassídico ou ortodoxo, sem levar em consideração como a sua escrita —com ênfase radical no respeito pelo que existe de genuinamente único em cada indivíduo— também entra em choque com as limitações daquele universo.

Filho e neto de rabinos, Singer demonstra exímio conhecimento de fontes religiosas nos ensaios em que escreve exclusivamente sobre judaísmo e misticismo judaico.

Em um desses ensaios, ele apresenta os principais conceitos que norteiam o estudo da cabala de maneira simples e direta. Em outro, ele oferece uma reflexão sobre o estilo de vida da comunidade ortodoxa de Williamsburg, no Brooklyn, Nova York, no qual pondera, entre outras coisas, sobre a importância da vestimenta como uma forma de linguagem.

Já para quem se interessa pela literatura e o teatro em língua iídiche, a coletânea apresenta dois excelentes ensaios que tanto servem de introdução a esses assuntos quanto de crítica, principalmente quando Singer enfatiza que, para permanecer viva, a literatura iídiche deve se esforçar para refletir as experiências e as atitudes contemporâneas dos falantes dessa língua, sempre a tomar cuidado em evitar qualquer espécie de sentimentalismo e para não transformar o passado em uma caricatura.

Sendo assim, recomendo a leitura de "Old Truths and New Clichés" a todos os que se interessam pela obra de Singer e aos que desejam desenvolver um conhecimento mais aprofundado desse autor, que, há algum tempo, pouco antes de estourar a pandemia de Covid-19, tornou-se uma das minhas principais companhias.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.