Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Como a literatura pode estreitar nossos laços com o mundo

Rahel, Arendt e Memmi encontraram na leitura e na escrita modos de expressar suas visões e posições no mundo

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Em artigo originalmente publicado na França em 1934, a filósofa Hannah Arendt escreve sobre o efeito que a obra de Goethe teve na vida de Rahel Varnhagen (1771-1833). Segundo Arendt, o poeta alemão teria conferido à escritora judia uma linguagem a partir da qual ela finalmente conseguiu se expressar.

Arendt observa que uma das consequências do antissemitismo no desenvolvimento de Rahel fora o de contribuir para a sua sensação de profundo desenraizamento, pois, desde o início da sua vida, em virtude do preconceito, Rahel viu-se impedida de partilhar um contexto a partir do qual as suas experiências fizessem qualquer sentido:

"Rahel deve a Goethe a possibilidade de relatar as suas experiências, de colar novamente em retrospecto o que era apenas um amontoado de fragmentos. Sem Goethe, ela veria sua vida apenas de fora, sob aparências fantasmáticas. Ela não teria tido como unir sua vida ao mundo onde, no entanto, era obrigada a viver."

A filósofa alemã Hannah Arendt - Reprodução

Ao desenvolver esse argumento, Arendt deixa claro que, embora não exista uma perfeita analogia entre a vida de uma mulher na situação de Rahel e a obra de um escritor como Goethe (compreendida enquanto representativa de uma cultura a qual Rahel não possuía pleno acesso), ainda assim será a partir desta leitura que ela conseguirá se libertar da sua sensação de isolamento:

"Goethe ensina a Rahel como as coisas estão relacionadas: ele diz para ela que a felicidade e a infelicidade não caem do céu sobre uma criatura, mas só podem existir em uma vida capaz de contê-las em um molde (...) Rahel passa a se compreender através de Goethe. Ele quase toma o lugar da tradição para Rahel. Ela confessa a sua fé no escritor, se apega a sua figura e assim penetra na história alemã".

O que atrai Rahel em Goethe é precisamente a maneira como —em sua obra e, principalmente, no romance "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister" (1796)— o escritor promove uma reflexão sobre o aspecto performático da formação individual, levando-nos ao entendimento de que somente nos tornamos quem realmente somos a partir de uma maior interação com o mundo e da maneira como aprendemos a nos situar enquanto agentes das nossas próprias experiências.

Goethe oferece a Rahel Varnhagen as ferramentas para o cultivo do autoconhecimento, para lidar com o outro e encarar o mundo. Assim, podemos dizer que a leitura de Goethe acabou por se transformar em uma espécie de exercício terapêutico no qual, à medida que Rahel interpretava o que dizia o autor, passava a se compreender melhor e a encontrar uma linguagem para contar a sua própria história.

Esse artigo de Arendt sempre me vem à cabeça quando começo a pensar sobre como a leitura e a produção de textos podem nos ajudar a reparar nossa relação com o mundo, permitindo-nos rever a interpretação sobre determinados eventos e emprestar maior coerência à narrativa das nossas vidas.

Recentemente, durante a leitura de um artigo acadêmico sobre o escritor e crítico cultural Albert Memmi (1920-2020), autor de "A Estátua de Sal" (1953), romance autobiográfico no qual ele descreve os acontecimentos que marcaram a sua infância e juventude, deparei-me com a ideia de que uma das chaves para compreender a sua obra estaria diretamente relacionada a um ideal de reparação de mundo.

Nascido na Tunísia, em uma família muito pobre de judeus de ascendência berbere e italiana, Memmi aprende desde cedo a se comunicar no dialeto judeu-árabe, no árabe falado nas ruas e no francês da escola, havendo, portanto, sido profundamente influenciado por elementos dessas três culturas.

Para Lawrence R. Schehr, autor do texto sobre Memmi, a ideia de reparação de mundo que informa a obra do escritor tunisiano implica em aprendermos a lidar com a complexa trama de influências que informa a nossa identidade enquanto indivíduos.

No caso de Memmi, esse esforço é refletido em uma tentativa, a partir da literatura, de finalmente se compreender enquanto africano e judeu, nativo de um país de colonização francesa e maioria muçulmana. Afinal, como ele mesmo costumava dizer, a exclusão de qualquer um desses elementos resultaria na falsificação da sua identidade.

Do mesmo modo que a interpretação de Arendt para a trajetória de Rahel Varnhagen, o que me chama a atenção em Memmi é notar como ele transforma a literatura e o fazer literário em uma maneira de se colocar no mundo enquanto autor da sua própria história, sempre a resistir a qualquer imposição de isolamento.

O escritor alemão Johann Wolfgang Goethe - Reprodução

Em sua biografia de Rahel, publicada algumas décadas depois do artigo que menciono no início desta coluna, Arendt comenta que o isolamento costuma ser agravado por certa tendência à introspeção. Isto é, pela inclinação que possuímos de fazermos uso das nossas lembranças como se elas pudessem nos proteger de um mundo hostil. No entanto, é justamente por interromper o nosso diálogo com o mundo que a introspecção acaba nos colocando em uma posição de maior segregação e vulnerabilidade.

Tanto em Rahel, como em Memmi, a literatura e o fazer literário abrem espaço para o contraditório e para uma tentativa de compreensão de si a partir das próprias experiências de mundo.

Ao permitir com que o mundo penetre a vida interior de Rahel, a leitura de Goethe convida a escritora ao pensamento. Arendt caracteriza o pensamento como uma atividade solitária em que jamais perdemos o contato com o mundo dos nossos semelhantes. Afinal, eles estariam representados no próprio eu com o qual estabelecemos o diálogo do pensar.

Por sua vez, Memmi comenta que a solidão havia se tornado para ele uma regra de sabedoria prática: "Esquizofrenia indispensável para se produzir um trabalho! Para pensar corretamente, faz-se necessário estar sozinho".

Segundo Schehr, "esquizofrenia" seria a palavra-chave para entendermos esta citação de Memmi. Para o estudioso, quando estamos a sós, nos dividimos em dois. Tornamo-nos ao mesmo tempo o eu e o outro. Assim, ele conclui que a escrita de Memmi surge justamente dessa divisão, como uma tentativa de restaurar a unidade do sujeito que pensa e de transformar o seu relacionamento com o mundo.

Temos aqui, portanto, três figuras —Rahel, Arendt e Memmi— que viveram épocas distintas e habitaram contextos culturais diferentes, mas que encontraram na literatura e no fazer literário uma maneira de recuperar e manter os seus laços com o mundo. Quem sabe também sejamos capazes de fazer o mesmo.

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