O mais surpreendente sobre o fenômeno evangélico no Brasil não é seu crescimento exponencial nas últimas décadas ou qual "a cara" desse grupo, que hoje representa um em cada três brasileiros, seja preta, pobre, periférica e majoritariamente feminina. Nem que há algumas décadas cientistas sociais tenham descrito esse fenômeno como sendo modernizante e capaz de elevar os pobres à classe média.
O mais surpreendente é constatar que intelectuais, formadores de opinião e jornalistas em geral nutrem um preconceito irracional e generalizado pelos evangélicos. Conforme escreveu o sociólogo americano David Smilde, que estudou pentecostalismo na Venezuela, para a maioria dos intelectuais "na melhor das hipóteses, o movimento evangélico é uma expressão de inutilidade; na pior, de imperialismo cultural".
Os quatro anos de bacharelado em história na USP não me prepararam para o choque cultural de viver em um bairro na "periferia da periferia" de Salvador. A minha pesquisa de doutorado não era sobre religião, mas é impossível estudar o Brasil popular hoje sem considerar esse fenômeno.
Em termos de religião, havia no bairro uma igrejinha católica, nove terreiros de candomblé e mais de 80 igrejas evangélicas das mais diversas denominações e tamanhos, presentes em quase todas as ruas.
Essas igrejas locais cumprem a função de Estado de bem-estar social informal. Dentro, as pessoas são tratadas pelo nome e suas crianças têm atividades no contraturno escolar enquanto os pais trabalham. E a rede de ajuda mútua se articula para oferecer cesta básica a quem precisa, ajuda a encontrar emprego e viabiliza internações e consultas com especialistas.
Por que, então, pessoas identificadas com valores como justiça social e combate à desigualdade continuam míopes em relação às consequências positivas desse fenômeno de dimensões nacionais? A minha conclusão vem de 18 meses vivendo nesse bairro de Salvador e do trabalho de pesquisadores que estudam camadas populares urbanas no Brasil.
Claudia Fonseca, uma das antropólogas mais importantes em atividade no país, comparou a separação entre brasileiros das camadas médias e altas e o "Zé Povinho" com o apartheid, o regime segregacionista implantado por muitos anos na África do Sul. Ela escreveu que o abismo entre classes no Brasil é tão agudo que esses mundos só se encontram em duas ocasiões: quando patrões e empregada conversam na cozinha durante o café da manhã e em situações de assalto.
O preconceito é de classe. Quanto mais perto o pobre está fisicamente, mais ele incomoda e é "patologizado" por ser "muito barulhento", "muito sexualizado", "muito religioso", "alienado", "despreparado", "não saber votar" e "ter família desestruturada". Mas o pobre evangélico não aceita ser tratado como criança ou vitimizado e por isso é visto como alguém, "ousado" que "não sabe seu lugar".
Por causa da atitude desinformada e preconceituosa dos intelectuais em relação ao cristianismo, líderes religiosos e pastores midiáticos se apresentam convincentemente para a sociedade como porta-vozes dos evangélicos, um grupo que é gigante e muito diverso. E ao associar qualquer evangélico a Malafaias, Macedos e Felicianos, esses intelectuais entregam (na prática, empurram) 60 milhões de brasileiros para o colo de políticos conservadores.
O resultado da eleição de 2018 é uma consequência dessa atitude. O Datafolha cruzou dados coletados sobre intenção de voto e religião na véspera do segundo turno. Todos os principais grupos religiosos se dividiram entre Haddad e Bolsonaro, menos os evangélicos, que preferiram majoritariamente o ex-capitão.
No início do ano em 2018, quase ninguém acreditava que o candidato azarão, sem tempo de TV, fosse ser eleito. Foi.
Este ano, pesquisas apontam que a preferência entre evangélicos está dividida entre Lula e Bolsonaro. Mas é importante considerar duas coisas: o esforço dos pastores midiáticos, com milhares de seguidores na internet, para demonizar a esquerda, e o fato de que para evangélicos pobres, Lula e Bolsonaro não são antípodas. Eles são alternativas, cada qual com vantagens e desvantagens.
E ainda estamos a oito meses do segundo turno.
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