Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

Quando evangélicos não invadem terreiros

Por que a atuação social de evangélicos com dependentes de substâncias e com presos e seus familiares não aparece na mídia?

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É oportuno a gente prestar atenção nas pesquisas sobre a relação entre crime e cristianismo no Brasil. De um lado, vemos ataques covardes a terreiros de candomblé e umbanda, e ameaças de morte como a que recebeu na semana passada a historiadora Juliana Cavalcanti, da UFRJ, por divulgar pesquisas sobre cristianismo que divergem da interpretação que cristãos fazem da Bíblia.

Do outro, temos as atuações de evangélicos em cracolândias e prisões, que geralmente atraem menos interesse da sociedade. O caso apresentado a seguir faz parte desse segundo grupo e aponta como esse assunto é mais complexo e interessante do que parece.

Quem me contou sobre a Casa Mãe foi a educadora Roberta Fernandes, doutora pela UERJ, que chegou lá em 2017 por causa de um projeto de pesquisa sobre coletivos populares e rapidamente se tornou colaboradora. "Na segunda ou terceira visita eu estava lavando o banheiro, lavando a louça, esfregando o pano de chão, para contribuir com aquelas mulheres, geralmente poucas, as mesmas, com pouquíssimos recursos. E com muita fé."

Culto evangélico em Ananindeua (PA)
Culto evangélico em Ananindeua (PA) - Nay Jinkins - 21.set.21/Redes sociais

A Casa Mãe apoia familiares dos adolescentes em privação de liberdade internados no CAI-Baixada (Centro de Atendimento Intensivo de Belford Roxo), na região metropolitana do Rio. Recebeu esse nome porque, apesar de a lei permitir que outros parentes visitem esses jovens, na prática, são principalmente as mães que fazem isso.

A Casa Mãe começou a partir de um ato de solidariedade de uma funcionária da unidade em relação às mães muito pobres que passavam horas de pé, no sol, fazendo fila, para encontrar seus filhos. "Vendo essa situação, sendo uma mulher cristã evangélica, com seus objetivos cristãos, ela começou a atuar levando o café da manhã para as mães na fila, oferecendo um pãozinho, um café, um bolo," conta Roberta. Para proteger a privacidade da funcionária, vou chamá-la de Laura.

"O cenário da maioria das mulheres ali desde sempre é de não ter um emprego formal, às vezes com muitos filhos. Às vezes tem um filho adolescente preso e um bebê no colo ou um bebê na barriga," conta Roberta. E no início o ato de oferecer o café causou estranhamento. "Elas olhavam desconfiadas para Laura como se perguntassem: ‘Como assim, alguém me oferecendo um café de graça na fila?’" Mas os vínculos de afeto com as mães da fila foram se formando.

E aos poucos, também, algumas mulheres conhecidas da igreja de Laura e outras que ouviam falar do trabalho entravam em contato se oferecendo para ajudar. Dessa forma, a oferta de café e bolo evoluiu para o aluguel de uma casa na vizinhança onde as voluntárias se encontram todas as quartas e sábados, nos dois turnos de visitas, para receber as mães.

Na medida em que a ação cresceu, o tema da religião causou tensões entre as voluntárias. Uma parte delas achava que o espaço deveria ser usado para a evangelização: realizar cultos, fazer oração, cantar. "Mas Laura não queria fazer daquele o espaço de uma igreja, e sim um lugar de acolhimento," conta Roberta, "e ela foi dando o limite, o contorno, mostrando para aquelas pessoas que não era bem isso que ela queria."

No final do período em que Roberta esteve na Casa Mãe, em 2018, a presença da religião tinha sido ajustada. "Tinha uma pastora lá, que é uma figura importante e respeitada, atuando na hora de fazer uma oração, puxar uma palavra, fazer uma leitura bíblica." Mas a atuação dela ficou condicionada ao interesse das mulheres que frequentavam o espaço. Ao mesmo tempo, para Roberta, a relação com as igrejas também ajudavam a manter a casa. "Teve uma época que tinha uma galera da Universal, por exemplo, que ia lá levar mais doações. Para isso eles são muito bons, para mobilizar para uma campanha para algo que se precise muito."

Antes da pandemia mudar as rotinas de todo mundo, a Casa Mãe servia aproximadamente 150 almoços por dia. As mulheres pegavam suas senhas para a visita e, em vez de esperar no sol da rua, iam para a Casa Mãe e tinham refeição, podiam beber água e ir ao banheiro. E durante um tempo, havia um bazar com roupas para emprestar para as mulheres que chegavam com roupas que não eram permitidas por motivos de segurança.

Depois de 2018, Roberta ficou grávida e só retornou o ano passado. "Hoje eu vejo a Casa Mãe um pouco mais esvaziada do que o que se tinha antes. Não sei se ainda há um efeito da pandemia. Não sei como está o sistema de visitação na unidade. Mas o serviço permanece."

A Casa Mãe é um exemplo pequeno do ponto de vista do tamanho, mas aponta para como a religião pode tornar o sentimento de empatia em engajamento e ação. É o que faz o Padre Júlio Lancellotti com moderadores de rua de São Paulo. Mas a Casa Mãe dá a oportunidade para apontar o protagonismo da mulher evangélica, que geralmente passa despercebido por causa da ideia estereotipada de que a evangélica é submissa. E serve para a gente se perguntar: por que pouco se fala da atuação social de evangélicos, que geralmente acontece onde ninguém mais quer ir: em presídios e clínicas de reabilitação, no "lixão das almas" como me disse um evangélico uma vez?

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