Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Como a Record mudou o jornalismo

Emissora é apenas o braço de comunicação de uma igreja ou representa um grupo de negócios que inclui igreja e partido político?

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Na semana passada escrevi como o jornalismo trata o cristianismo evangélico. Isso levanta perguntas complementares: como o cristianismo evangélico trata o jornalismo? E de que maneira a interferência editorial de uma igreja é diferente da de outros grupos da comunicação, que também têm interesses políticos e comerciais?

Para responder a essas perguntas, ouvi acadêmicos que estudam o tema e funcionários que passaram pela Rede Record, uma empresa controlada pela Igreja Universal e cuja audiência não é exclusivamente evangélica.

Por muitas décadas a liderança da Universal se sentiu perseguida pela Rede Globo —e esse foi um dos motivos para a igreja ter comprado a Record. Em 2006, a Record contratou uma equipe de jornalismo forte, disputando profissionais renomados com outros veículos, para competir "de igual para igual" com a rival no campo da comunicação.

Entrevista de Jair Bolsonaro à Record, feita pelo jornalista Eduardo Ribeiro e com participação de Douglas Tavolaro, vice-presidente de jornalismo da Rede Record
Em 4 de outubro de 2018, o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro concede entrevista à TV Record no mesmo horário em que seus adversários participavam de debate na Globo - Divulgação

A percepção de quem acompanhou essa disputa de dentro é que a Record não calculou o custo necessário para conquistar uma audiência fiel mantida por meio de programas caros e que tem a Globo como parâmetro de conteúdo televisivo.

A capitulação da Record foi gradual. Aos poucos, a liberdade editorial para dialogar com audiências diversas e competir com a Globo retornou ao controle da igreja e a empresa se posicionou como a "emissora da família brasileira", para espectadores que não querem assistir a violência, sexo nem beijo gay.

Nesse movimento, a Record também voltou a ser um braço de comunicação da igreja. Anúncios apresentando as "curas" da Universal hoje aparecem nos intervalos de reportagens sobre alcoolismo, depressão, dependência química, e esse conteúdo é reapresentado nos cultos televisionados.

No meio jornalístico, profissionais perguntam a seus pares que trabalham ou trabalharam para a Record se eles são evangélicos. Religião não foi critério de contratação, mas as coisas estão mudando. Vagas de entrada na carreira jornalística como estagiários e produtores começam a ser ocupadas por jovens fiéis. E profissionais estabelecidos percebem que a conversão aumenta as chances de promoção na empresa.

Politicamente, a Universal dialogava com quem estivesse no poder. Em 2010, Dilma concedeu sua primeira entrevista como presidenta para a Record. Em 2018, a igreja mudou essa postura quando o bispo Macedo declarou apoio à candidatura de Bolsonaro ainda no primeiro turno. O ex-capitão não participou do debate na emissora porque se recuperava da facada. Mas, no dia e hora do último de debate, realizado pela Globo, a Record transmitiu uma entrevista gravada em sigilo, em que Bolsonaro falou sem ser questionado pelo repórter por 22 minutos.

Veículos como a revista britânica The Economist e o diário The New York Times anunciam publicamente apoio a candidatos. Mas seus serviços precisam cativar audiências para ganhar dinheiro vendendo publicidade. A Record depende menos do orçamento publicitário porque tem o apoio de uma igreja com milhões de fiéis dizimistas. Então, tem menos contas a prestar para sua audiência, o que ficou aparente durante a cobertura da pandemia.

Grandes jornais e emissoras colocaram a agenda política à frente do interesse público, negando o tema ou estimulando o pânico para "bater" no governo. A Record defendeu o argumento negacionista do governo por lealdade e para manter igrejas abertas. Seu noticiário televisivo de horário nobre ignorou, por exemplo, o primeiro colapso do sistema de saúde de Manaus, em abril de 2020, escondendo a gravidade da situação, a importância do isolamento social e da vacinação.

Essas são algumas das formas como a Record mudou o jornalismo. Isso é relevante porque o modelo de negócios dessa indústria está em crise ao passo que o número de evangélicos no país segue crescendo. Será, então, que a Record serve para se pensar cenários futuros do mercado de comunicação no país, com a entrada de outras igrejas nesse campo? E que tipo de negócio é esse: uma igreja com braços na política e na comunicação ou um novo grupo econômico que inclui igreja, partido político e rede de comunicação?

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