Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

O que ninguém viu na Marcha para Jesus

Lula também esteve presente na marcha de São Paulo em que Bolsonaro foi o convidado especial

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O ponto de encontro da marcha em São Paulo é o lado de fora da estação Luz do metrô, no centro velho da cidade. Tenho pela frente 4 quilômetros de caminhada sob o sol quente. Subo escadas até a saída junto com um grupo pequeno, mas animado, que "puxa" cantos com temática cristã parecidos aos de torcidas de futebol.

O clima é descontraído, diferente da circunscrição de uma procissão católica ou da emotividade à flor da pele de um culto pentecostal. Enquanto vende água e refrigerante, Jamile me explica que "o evangélico ‘gospel’ é mais moderno do que o crente de antes". Ela tem 48 anos, uma faixa púrpura escrita "Jesus" na testa, glitter no rosto e "chucas" vermelhas no cabelo. Hoje "desigrejada", ela celebra ver o cristianismo tomando as ruas. "Quando me converti, aos 13 anos [em 1984] era outra história. O crente era perseguido, era difícil."

Multidão na 30ª edição da Marcha para Jesus, realizada no início do mês - Bruno Santos - 9.jul.22/Folhapress

A marcha ainda não começou e passo pelos trios elétricos enfileirados na avenida Tiradentes. Mas gradualmente a multidão se forma com jovens, adolescentes, pais e filhos, muitos de origem trabalhadora, a maioria usando a camiseta oficial que celebra os 30 anos do início do evento no Brasil. Em vez de indumentárias sóbrias, vejo bonés, roupas despojadas, maquiagens coloridas e alguns penteados afro.

A multidão colorida lembra o Carnaval de rua, com música animada, só que sem consumo de bebidas alcoólicas. Artistas saúdam a audiência chamando-os de "povo feliz". Grupos de amigos fazem coreografias enquanto marcham.

As cores verde, azul e amarelo em balões de ar decoram o trio elétrico "abre alas" onde estão o apóstolo Estevam e a bispa Sônia, organizadores o evento, pastores midiáticos e o convidado especial deste ano, o presidente Bolsonaro.

Bolsonaro fala a primeira vez às 10h06. "Nós temos uma posição. Somos contra o aborto, contra a ideologia de gênero, contra a liberação das drogas, somos defensores da família brasileira." Em cerca de quatro minutos, alerta para a "guerra do bem contra o mal" e para o perigo do socialismo. É aplaudido, sem ênfase, também sem vaias.

Ao longo do trajeto, fios amarrados em postes entre as vias da avenida expõem produtos com a temática cristã. Falo com um vendedor de estatura baixa e físico atlético que expõe camisetas, uma delas de cor preta com a silhueta do presidente em branco e o texto "Bolsonaro Presidente". A imagem lembra um cartaz do filme O Poderoso Chefão (1972). Pergunto quanto a camiseta custa, mas, em vez de responder o preço, ele fala exaltado: "E ainda dizem que evangélico vota na esquerda. Essas camisas vão ser as primeiras a acabar".

A marcha termina na Praça dos Heróis da Força Expedicionária Brasileira (FEB), onde há um palco semelhante em tamanho e modernidade ao usado em shows que acontecem em estádios de futebol. É nesse local que o evento prossegue por mais dez horas com apresentações de estrelas da música gospel brasileira.

A dois quarteirões desse palco encontro o único vendedor que eu vi oferecendo bandeiras vermelhas com o rosto de Lula ao lado das azuis com o de Bolsonaro. Mais de um milhão de pessoas cruzaram esse ponto até o meio-dia para chegar ao palco e, segundo o vendedor, ninguém hostilizou seu trabalho por expor o produto do candidato petista.

A maioria esmagadora das pessoas que reagiram à exposição da bandeira vermelha foram críticos ao ex-presidente. Alguns, exaltados, discursam de passagem, mas a maioria se manifesta com humor. E um grupo menor demonstra apoio ao petista. Uma mulher chega à barraca de braços abertos dizendo: - "Finalmente encontrei o meu lindo!" E abraça a bandeira com o rosto de Lula.

Os monitores de LED no fundo do palco projetam a palavra "Jesus" em verde e amarelo para a entrada de Bolsonaro às 12h40. Ao ser apresentado, o presidente anda para o centro do palco e, sorrindo, saúda o apóstolo Estevam batendo continência. Durante o discurso de 15 minutos, um grupo próximo a mim tenta mobilizar a plateia a cantar palavras de ordem contra Lula, mas são rapidamente inibidos pelo apóstolo, que estava ao lado de Bolsonaro.

Em seguida, a bispa Sônia convida a plateia a abençoar o presidente: "Eu quero orar representando todas as mães do Brasil. Não quero filhos drogados, não quero que a malignidade entre na nossa terra. Então, levanta a tua mão porque aqui tem um homem de família. E nós precisamos que ele continue."

A 500 metros dali, na entrada da estação Carandiru do metrô, Neuza e sua irmã conversam com o vendedor para comprar bandeiras de Bolsonaro. Elas pretendem ir a mais dois atos ainda este mês. Ela defende enfaticamente que pastores merecem enriquecer pelo trabalho árduo que fazem de evangelização. Mas não aprova a atitude de convidar Bolsonaro para a marcha. "Não deveriam misturar política e religião, mas estou na igreja por causa de Deus. O apóstolo também é um ser humano."

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