Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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'Marighella', com ação demais e sustância de menos, me jogou no meio do tiroteiro

Filme de Wagner Moura me fez lembrar de autobiografia de Alfredo Sirkis, que adentra a alma da geração de 1968

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Há duas ou três semanas fui assistir "Marighella". Saí de casa decidida a amar o filme de Wagner Moura, com Seu Jorge no papel do "guerrilheiro que incendiou o mundo", segundo a portentosa biografia escrita por Mário Magalhães. Naquele dia, uma quinta-feira, tudo parecia especial. Só o ato de ir ao cinema, depois de tanto tempo de abstinência, já era revolucionário.

Em tempos de alinhamentos automáticos e julgamentos prévios, difícil a confissão: eu gostei, mas não amei "Marighella". O filme não me entregou o personagem que eu conheci nas páginas do livro. Sobretudo, não me deu o contexto necessário para eu entendê-lo. Talvez ação demais e sustância de menos.

Por que aquele homem, que só sabemos que era deputado porque alguém o chama assim, en passant, empurrou jovens tão jovens para o suicídio? A ditadura brasileira só existiu para combater comunistas? Como Marighella virou Marighella? Que tempo lhe coube viver?

Pensando no filme, lembrei-me de um livro que li não faz muito tempo e reli agora, "Os Carbonários", de Alfredo Sirkis, prêmio Jabuti de 1981. Que livro! Relato autobiográfico, a obra é um trillher, que adentra a cabeça, a alma do jovem de 1968, a geração das primaveras. Um dos capítulos, inclusive, fora intitulado "Apoio a Marig...ela".

Em 1968, Sirkis era um garoto de classe média-alta do Rio de Janeiro, que estudava no Colégio de Aplicação, da Faculdade Nacional de Filosofia. Um colégio de elite, famoso pelo rigoroso exame de admissão. Filho de pai lacerdista, era também um devoto do ex-governador da Guanabara, o megafone da UDN, um dos principais articuladores do golpe de 1964.

Aliás, o conservadorismo da família Sirkis tinha raízes na Rússia. Judeu polonês, o pai havia escapado para o país vizinho durante a ocupação nazista. Lá, trabalhara em construção de estradas de ferro, passara fome, pegara malária. O contato com os camponeses soviéticos que enfrentavam a coletivização decretada por Stálin e o doutrinamento compulsivo nos campos de trabalhos forçados não chegaram a lhe convencer das benesses do sistema.

"O início da guerra entre Alemanha e URSS salvou-lhe a vida", contou Sirkis. "Meu pai já estava morto de fome quando foi levado a um quartel, alimentado, curado do paludismo e incorporado ao Exército Vermelho. Chegou ao fim da guerra como capitão de blindados e voltou à Polônia devastada. Em 1946, escolheu a liberdade, fugindo para o Brasil."

Apesar da formação, aos 17 anos, Alfredo Sirkis virou guerrilheiro. A opção pela luta armada fora, sobretudo, um chamamento do tempo. Mais do que derrubar a ditadura, implantar ideias socialistas no país ou seguir líderes como Marighella e Lamarca, ele obedeceu à ordem mundial: "Valia à pena, porque a revolução era a grande aventura da vida".

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Alfredo Sirkis após entrevista à Folha em Brasília - Pedro Ladeira - 5.set.18/Folhapress

Em seu livro, Sirkis nos transporta para um contexto influenciado pela Revolução Cubana, pela Guerra do Vietnã, pelos movimentos guerrilheiros que pipocavam em toda América Latina, pelo levante dos estudantes em Paris, pelos Panteras Negras. Pegar em armas contra a opressão parecia ser o caminho a seguir. Enfim, podia dar certo.

"Convertido à causa vietcongue, eu acompanhava, eletrizado, o cerco a Khe San e a batalha de Hué. Os noticiários de rádio, na bucólica varanda, eram verdadeiras finais de Copa do Mundo. Papai torcendo pelos marines, eu, pelos vietcongues."

Para a turma de Sirkis, o mais vivo exemplo, porém, era Che Guevara. Afinal, Cuba ficava logo ali. "Nosso consenso nas reuniões e nos papos de bar: guerrilha tinha que ser no campo. Coisa nobre, feito fazia o Che", escreveu ele, ao relembrar os primórdios da guerrilha urbana. "Havia pelo menos quatro grupos distintos. Um era do Marigela. Um racha no PCB que optara pela linha Che. Fazia a maioria dos assaltos a banco em São Paulo. Estava juntando fundos para financiar a guerrilha rural."

Ao terminar de reler "Os Carbonários", encontrei o meu incômodo com o filme de Wagner Moura. O livro me pegou pela mão e me conduziu pelo caminho que desaguou na luta armada no Brasil. Página a página, fui conhecendo e me apaixonando pelo protagonista. Quando ele partiu para assaltos a banco e sequestros, já estava ao lado dele. Ao contrário —esta foi a minha impressão ao sair do cinema, o filme me jogou no meio do tiroteio.

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