Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Obra-prima do jornalismo de guerra é uma experiência sensorial no campo de batalha

Para me salvar do maniqueísmo do noticiário sobre a invasão da Ucrânia, foi reler 'Despachos do Front', de Michael Herr

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Faz muito tempo, eu ainda era estudante de jornalismo, mas me lembro exatamente da sensação física ao ler "Despachos do Front", o lisérgico livro de Michael Herr. No caso, o front se espalhava pelo Vietnã, onde se desenrolava a mais cinematográfica das guerras: a Guerra dos Estados Unidos, segundo os vietnamitas.

Descrito por John Le Carré como "o melhor livro já escrito sobre homens em guerra", a obra-prima de Herr é uma experiência sensorial num campo de batalha. Com a televisão ligada, zapeando entre a BBC, a CNN e a GloboNews, comecei a relê-la, talvez para me salvar do maniqueísmo dos noticiários —e das redes sociais, onde a contextualização virou sinônimo de defesa do indefensável.

Militar ucraniano sobre veículo russo destruído em Kharkiv, na Ucrânia
Militar ucraniano sobre veículo russo destruído em Kharkiv, na Ucrânia - Sergey Bobok - 27.fev.22/AFP

Diante dessa batalha dos Superamigos contra Lex Luthor, como o conflito na Ucrânia vem sendo vendido por boa parte dos comentaristas e apresentadores de TV, "Despachos do Front" nos obriga a descer à outra profundeza, entrando em contato com a psique das guerras. Após a queda de Saigon, em abril de 1975, o autor demorou para conseguir transpor para o papel o que viu e viveu no Vietnã.

Com o país asiático sob o ataque dos Estados Unidos desde 1955, ele desembarcara em Saigon como correspondente da revista Esquire. Um general chegou a lhe perguntar se iria escrever sobre moda militar. Logo estava aclimatado, cruzando a selva nos barulhentos helicópteros, drogando-se na capital vietnamita com os soldados.

Humor, loucura, drogas, medo, desespero, apatia, resignação, surrealismo, sexo, rock and roll: Herr alcança tudo, numa rara combinação de precisão, paixão, compaixão. A escrita é frenética, urgente, entrecortada por bombardeios. Inspirando-se no novo jornalismo, ele deixa vir à tona o seu fluxo de consciência, num incessante monólogo interno.

Sua missão nas páginas não parece ser explicar, mas compreender, sem recorrer a platitudes sentimentais. Regado à dexedrina e Jimi Hendrix, capturou não só a dor, mas a excitação e até o prazer da guerra. No front americano, aliás, o cardápio era sortido. Além da dexedrina, heroína, morfina, ópio, sedativos e alucinógenos.

Não por acaso Michael Herr contribuiu nos roteiros de dois dos mais influentes filmes do gênero: "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola, e "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick. Ao mergulhar no Vietnã trouxera de lá essência, alma, humanidade, uma experiência ao mesmo tempo única e universal.

Apesar de todos os progressos, de todas as conquistas civilizatórias, a mensagem que fica é que a guerra vai sempre existir, bestial, brutal, incompreensível, indefensável, mas indissociável da natureza dos homens e das civilizações. "Guerra e Paz", como na saga de Liev Tolstói, o conterrâneo de Vladimir Putin.

Erramos: o texto foi alterado

A coluna grafou o nome Jimi Hendrix de forma incorreta em versão anterior deste texto. O erro foi corrigido.

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