Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Descrição de chapéu América Latina

Mujica, suvenir no resto do mundo, ainda é o tupamaro que virou presidente

Livros contam a história da guerrilha urbana no Uruguai, que deixou rastros em todos os cantos de Montevidéu

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Depois de um mês no Uruguai, estou voltando para casa. Verdade seja dita, Bolsonaro aniquilou a palavra saudade do meu dicionário. Na mala, um único souvenir: uma placa de alumínio, no tamanho e formato de uma placa de rua, com a foto de "Pepe" Mujica gravada.

De tupamaro a souvenir, foram léguas. Dois livros contam bem esta história: "La Redencion de Pascasio Báez", de Pablo Vierci, e "Una História de los Tupamaros – de Sendic a Mujica", de Alain Labrousse. O primeiro, uma ficção, e o segundo, um potente relato histórico.

José Mujica, então presidente do Uruguai, em entrevista à Folha na embaixada do Uruguai em Brasília - Sergio Lima - 17.jul.14/Folhapress

Inspirados pela então recente Revolução Cubana, militantes de movimentos de extrema esquerda se juntaram, no começo dos anos 1960, sob a sigla MLN-T: Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros, instaurando a guerrilha urbana no Uruguai. Daí em diante, fizeram misérias.

Em "La Redencion de Pascasio Báez", o protagonista, um cirurgião que largara a carreira para atender nos hospitais clandestinos de "la orga", vive o conflito entre a fidelidade e o questionamento do rumo que as coisas vão tomando com o passar dos anos.

A trama, talvez, seja frágil. Ao pretender colocar em xeque o mito moderno da épica revolução tupamara, o autor carrega a mão nos fatos históricos em detrimento da construção do personagem.

O mérito da obra é nos pegar pela mão e nos conduzir pelo fio da meada, com texto fluido e envolvente. Na primeira fase, "los tupas" são românticos: "Los Robin Hood de la guerrilla". As ações eram irreverentes, sempre tirando um sarro da burguesia.

Se assaltavam um cassino, devolviam as gorjetas aos garçons. Quando roubavam caminhões de víveres, distribuíam a carga para a população. Numa ocasião assaltaram e divulgaram balanços financeiros de grandes empresas. Ademais, se tornaram mestres da autopropaganda, ganhando a simpatia da população.

Porém, conforme os militares iam apertando o garrote, rumo ao golpe de Estado, em 1973, a luta se acirrou, com sucessivos sequestros, atentados a bomba, execuções de autoridades à luz do dia e fugas sensacionais, como a fuga de Punta Carretas, quando mais de cem tupamaros escaparam por um túnel.

O cume do ciclo de violência fora justamente o assassinato de Pascásio Bàez, um peão rural que desgraçadamente descobriu e denunciou um esconderijo tupamaro nos campos de Maldonado.

Já o livro "Una História de los Tupamaros – de Sendic a Mujica" traz o olhar do sociólogo francês Alan Labrousse. Perseguindo as artérias da organização, o autor analisa com equilíbrio as diversas fases: o surgimento, o jogo de gato e rato com os militares, o auge em 1971, o colapso frente à repressão, as divergências nos cárceres e exílios, o papel de Raul Sendic e, por fim, a assombrosa reorganização após o fim da ditadura, elegendo um tupamaro presidente da República.

Roteiro tupamaro

Por todos os cantos de Montevidéu encontrei rastros deles. Ou os persegui. Na Biblioteca Nacional, na avenida 18 de Julho, estão as coleções de dois jornais legendários: Época e Marcha, ambos com linha editorial aguerridamente à esquerda. O jornalista Eduardo Galeano escrevia para ambos. Com forte cobertura de América Latina, Época e Marcha proporcionam a compreensão e a temperatura do tempo.

Saindo da biblioteca e atravessando a 18 de julho, tem uma ruela, Dr. Tristán Narvaja, com sebos enfileirados de um lado e outro da calçada. Descendo três ou quatro quarteirões, avista-se um QG tupamaro: o restaurante MoLiNa, com as letras MLN em destaque. Outrora ponto de encontro de guerrilheiros, o MoLiNa resiste. Bom e barato.

Numa portinha da Dr. Tristán Narvaja, aliás, garimpei outra raridade: a coleção "Historia de los Tupamaros", escrita por Eleuterio Fernàndez Huidobro, "El Nato", o integrante da guerrilha que viria a se tornar o ministro da Defesa nos governos da Frente Ampla.

Curioso concluir: se para o resto do mundo Mujica já virou souvenir, adornado por frases filosóficas, para os uruguaios ele segue sendo "el tupa" que chegou lá.

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