Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Escritora discute tabu sobre mulheres que se arrependem de ter filhos

Para israelense Orna Donath, santificação da maternidade se relaciona a úteros postos a serviço da reprodução social

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Três assuntos que dominaram as redes sociais nas últimas semanas se entrelaçam para nos lembrar: "meu corpo minhas regras", uma ova.

Primeiro, fora o assombroso caso da menina de 11 anos, vítima de estupro e impedida de abortar por uma juíza de Santa Catarina. Em seguida, a criminosa exposição da atriz Klara Castanho, submetida a uma sucessão de violências. Também vítima de estupro, ela engravidara e entregara a criança para adoção.

Protesto em frente ao Ministério Público Federal contra a juíza Joana Ribeiro Zimmer, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que tentou impedir uma menina de 11 anos de realizar aborto após ser estuprada - Bruno Santos - 23.jun.22/Folhapress

Entre um caso e outro, o ex-presidente Lula apanhou de todos os lados, após defender o aborto legal num evento em São Paulo: "Madame pode fazer um aborto em Paris", disse. Aliás, caro Lula, não precisa ir à Paris. As reações foram imediatas. De um lado, a hipocrisia bolsonarista de sempre. Do outro, a turma do "não é hora de falar disso". Em vez de se apoiar a pauta, optou-se pelo esvaziamento do debate, desviando o foco para o suposto erro estratégico do candidato do PT.

Lançado no Brasil pela Civilização Brasileira, o livro "Mães Arrependidas", da israelense Orna Donath, nos ajuda a compreender o fato inexorável por trás da santificação da maternidade: o nosso útero está a serviço da sobrevivência socioeconômica das sociedades.

Segundo a autora, a ideia de que toda mulher se torna mãe impelida pela "tirania biológica" não passa de uma complexa construção social, já que as sociedades precisam de mão de obra para prosperar.

Em 2004, na Austrália, um exemplo explícito saltou aos olhos da autora. O então ministro da Fazenda, Peter Costello, fez um pronunciamento estimulando as mulheres australianas a terem mais filhos pelo bem do país, devido às baixas taxas de natalidade e ao aumento do custo das aposentadorias e pensões: "Um para a mãe, um para o pai e outro para o país", disse ele, instruindo cada mulher a "ir para casa e cumprir o seu dever patriótico nesta noite".

#regrettingmotherhood

Em 2015, na Alemanha, Orna Donath causou barulho. Tudo começou com uma série de entrevistas que ela concedeu à imprensa alemã, após a publicação de um artigo no periódico acadêmico Signs. Pesquisadora da Universidade Ben-Gurion, em Israel a antropóloga se concentra na discussão dos direitos reprodutivos e em estudos de gênero. A publicidade do seu trabalho, publicado posteriormente em livro, gerou a hashtag #regrettingmotherhood —e uma avalanche que se espalhou por toda a Europa.

Na obra, a autora, descrita pelo jornal Haaretz como "a face do movimento não parental", entrevistou 23 mulheres israelenses que se arrependeram de ter filhos. A partir dos depoimentos, ela vai entrecortando as questões biológicas, religiosas, comportamentais e sociopolíticas que envolvem o controle do corpo da mulher.

O capitalismo soube como nenhum outro sistema manejar o desejo. Embora a livre escolha se apresente envolta em princípios democráticos, esse conceito seria ilusório, pois ignora perversamente a desigualdade, as coações, as ideologias, o controle social e as relações de poder.

"O ato de questionar a validade da retórica da possibilidade absoluta de escolha é extremamente importante no que diz respeito à reprodução e à transição para a maternidade", escreveu, completando com uma pergunta incômoda: "Nós, mulheres, realmente temos espaço para conduzir se nossa liberdade de escolha está sujeita em grande parte a prescrições que nos são dadas? Quer dizer, somos livres para escolher o que a sociedade quer que escolhamos?".

No novelo das chantagens, Orna Donath levantou uma palavra-chave: arrependimento. Todas nós, em algum momento da vida, ouvimos a cantilena do arrependimento. A ameaça é inescapável. Se você não tiver filhos —e na quantidade certa—, uma hora vai se arrepender. Você pode achar que não quer, que nunca quis, que não é para você, mas está errada. Haverá de chegar o momento que será tomada de desejo, mas será tarde demais.

"O objetivo é ameaçar, acuar, alinhar e regular, assegurando-lhe que certamente vai se lamentar se fizer um aborto ou optar por não ter filho, uma vez que toda mulher deve estar intrinsecamente conectada com a gravidez devido ao desejo inato de ser mãe", avaliou.

"A filósofa feminista Diana Tietjens Meyers se refere a isso como um estado por meio do qual nossa imaginação é colonizada. Um estado no qual a doutrinação social é simplesmente assimilada pela consciência das mulheres a ponto de sufocar outras opções."

Já estive lá. Certa feita, conversando com a mãe de uma amiga que acabara de parir, na sala de espera da clínica São José, no Rio, eu disse que não queria ter filhos. Nunca me enxerguei mãe, jamais foi minha prioridade. Psicanalista conceituada, ela me disse uma frase que me atravessou o útero: "Mulher que não tem filhos não envelhece bem".

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