Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Caso Serena mostra o quanto a universalidade do fair play é relativa

Regra é idioma do esporte que permite o entendimento entre atletas do mundo todo

Serena Williams discute com o árbitro Carlos Ramos durante final do Aberto dos EUA
Serena Williams discute com o árbitro Carlos Ramos durante final do Aberto dos EUA - Eduardo Munoz Alvarez - 8.set.2018/AFP

Algumas tradições foram inventadas há tanto tempo que não se tem ideia de quando elas nasceram. No campo esportivo isso é fácil de datar. Elas surgiram junto com a regulamentação do esporte que aconteceu na Inglaterra. Volto a esse tópico para argumentar que as regras e a moralidade que hoje são cobradas dos atletas vem desse lugar e desse momento.

Vale lembrar que a regra no esporte é como um idioma. Permite que todos os atletas, de diferentes partes do mundo, originários de diferentes culturas conversem/joguem entendendo perfeitamente o que o outro quer dizer. É isso que o faz ser uma linguagem universal.

Do ponto de vista técnico isso está resolvido. O que é falta, o que é vantagem, se um ponto valeu ou não. A objetividade desses quesitos facilita muito a vida de árbitros e demais envolvidos na competição.

O que provoca dúvida, no entanto, são as questões morais. E nesse ponto voltamos às origens do esporte.

Nunca é demais lembrar que o esporte é um fenômeno sociocultural que tem suas origens numa sociedade que vivia de um modo muito específico. Seus valores morais estavam pautados em uma forma de agir e pensar que produziram, entre outras coisas, uma doutrina religiosa que rompeu com a igreja católica e promoveu a revolução industrial. É também dessa sociedade que emergiu o ethos cavalheiresco responsável pela forma como um grupo específico pensou e organizou o esporte.

Foram esses homens que pensaram o esporte para ele ser o que é. Foram também eles que afirmaram ser o fair play o padrão moral a sustentar o comportamento de gentis homens (e não mulheres, é bom que se diga) praticantes dos jogos institucionalizados, regrados e universalizados. Foram eles que, usando a si mesmos como exemplo, apontaram para o mundo e definiram que jogadores que não se portassem conforme as regras de boa conduta seriam considerados não apenas faltosos, mas sobre tudo, maus exemplos, imorais.

E assim atletas de diferentes gerações nasceram, cresceram, venceram e perderam ouvindo a missiva do jogo limpo. Jogar limpo é muito mais do que respeitar a regra. Se a regra existe, a obrigação do atleta é obedece-la. Lei é lei. Respeito é uma outra coisa. Respeito é uma atitude valorosa, uma virtude, que envolve consciência de si mesmo e do outro. Portanto, faz parte do conjunto de valores aprendidos do grupo social ao qual a pessoa pertence.

E aí está a relatividade da universalidade do fair play. Como regra ele pode até ser universal, mas não como valor. Não é difícil tornar uma regra universal quando se é o dono da bola e da norma que rege aquele jogo. Mas, não se pode exigir uma atitude valorosa quando árbitros de uma mesma modalidade avaliam atitudes semelhantes com punições distintas.

A partida final do Grand Slam dos EUA mostra isso. Homens discutem com árbitros e são considerados abusados. Uma mulher com o histórico de Serena Williams é considerada mau-exemplo e merece ser criticada e punida com os rigores da lei. É sempre bom lembrar que há modalidades em que os atletas são impedidos de se dirigir ao árbitro e em outras em que o jogo limpo vale mais do que a própria norma. 

Pouco ou nada se sabia sobre multiculturalismo nos tempos em que as regras do esporte e do fair play foram criadas. Em um mundo em que prevalecia o colonialismo não era difícil impor a vontade do mais forte. Os tempos mudaram, mas algumas regras ainda não.

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