Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

O futebol de Marta restaura a virtude do esporte como valor humano

Brasileira mostra que a glória da excelência é uma conquista que se dá com ação

O esporte é um daqueles fenômenos que exigem juventude. A prática esportiva começa muito cedo, e os atletas que chegam ao nível internacional muitas vezes o fazem ainda antes de se tornarem legalmente donos de si. Gastam anos em rotinas que envolvem a repetição à exaustão para ganhar a perfeição.

Isso pode durar até o momento em que outro ser mais obstinado supere a marca estabelecida. E, como o limite é o infinito, essa prática da superação é a razão de ser do esporte e do atleta.

Mas, é claro que toda busca tem um preço. Vivendo para ciclos que podem ser anuais, bienais ou quadrienais, a depender do objetivo a ser alcançado, mulheres e homens fora da média organizam suas vidas a partir de calendários pouco comuns à maioria das pessoas.

Aos 32 anos e melhor do mundo, Marta mostra que sua carreira está longe do fim
Aos 32 anos e melhor do mundo, Marta mostra que sua carreira está longe do fim - Emanuel Pires /Fotoarena/Folhapress

Lutam contra o tempo que corre, sem dar satisfação, roubando a juventude que traz a potência, a resistência e, por que não, a beleza de um corpo atlético e de movimentos perfeitos. Digo roubar, porque o esporte leva o atleta a ter que negar a passagem do tempo e o envelhecimento

Atletas fazem a transição de carreira, e junto com ela a transição de identidade, e se aposentam ainda quando a população média está vivendo a ascensão de uma vida profissional. Produtos da indústria cultural, do entretenimento, têm a visibilidade que os meios de comunicação lhe conferem enquanto protagonizam o espetáculo. E, como fogos de artifício, apagam em virtude da queda do desempenho, de uma lesão ou das artimanhas de um meio tão manhoso.

Esse apagamento confunde-se com o envelhecer, condição associada à idade, à perda da vitalidade, ao fim de um ciclo. Em diferentes modalidades esportivas os atletas envelhecem ainda na casa dos 20 anos.

Sentem-se impotentes diante de um corpo cansado de treinos e competições, de rotinas extenuantes que desrespeitam a privacidade e a vida social, e da falta de sentido para aquilo que no princípio parecia mágico, fascinante, quase irreal.

Mas, há quem subverta essa lógica. Desafia o inexorável. Amadurece e afronta o paraíso (ou seria confinamento?) da meninice imposta pelo mundo esportivo. E supera, leve como um beija-flor, o peso da idade e das discriminações que acompanham a carreira em modalidades relegadas à condição de intrusas ou coadjuvantes.

Dá um tapa na cara da sociedade se provando excelente, sem alarde, sem pompa ou circunstância, todos os dias, todas as competições, exercendo o sacro ofício de ser atleta. Encantando pela ousadia de se mostrar eternamente jovem, alguns desses seres singulares provam que envelhecer é diferente de ser idoso.

Como a Marta que, aos 32 anos, foi eleita pela sexta vez a melhor jogadora do mundo, no país de um futebol masculino --e paro aqui nas adjetivações para não correr o risco de carregar demais a mão no teclado.

Marta não envelhece, amadurece, serenamente, dignamente. Recebe a láurea com a grandeza de sua majestade conquistada dentro do campo, no dever do ofício.

O futebol praticado por ela resgata a beleza de um jogo que pode ser vencido ou perdido, mas acima de tudo tem a decência de ter sido jogado, sem simulações ou canalhices. Restaura a virtude do esporte como valor humano, tão esquecido em tempos de vitória a qualquer custo.

Marta, assim como alguns outros atletas, segue seu caminho proporcionando a nós o encantamento do gesto técnico habilidoso e da tão desejada conquista. Mostra que a glória da excelência não pode ser comprada nas melhores lojas do ramo. É conquista que se dá com ação.

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