Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Tiros que saem pela culatra

Disputas deixam pistas, quadras e piscinas e se transferem para o campo jurídico

Mais do que um discurso de fácil assimilação, efetivamente o esporte nasceu para ser uma prática com forte vínculo com a educação. Isso talvez explique a intolerância com atitudes imorais, como o descumprimento da regra, a trapaça e o desrespeito ao adversário.

Mas, deixando a ingenuidade de lado, não é possível compreender o esporte como uma atividade humana desvinculada do lugar e do momento histórico em que ela é produzida.

No princípio, foi preciso conceder aos poderosos para que as competições ganhassem força e visibilidade.O embate entre os mandatários levou o esporte, depois de estruturado, a ser um palco para as grandes disputas internacionais, vide os Jogos de Berlim, em 1936.

Mas, nenhum período foi mais pródigo em manifestações e tensões do que a Guerra Fria. Com o mundo bipolarizado não era difícil identificar a finalidade de ações e decisões. E foi nesse cenário que o doping nasceu, contrariando a intenção da disputa justa e leal.

E como toda ação gera uma reação, o controle de dopagem foi criado para impedir que esse “mal” maculasse uma atividade compreendida como educativa e universal.

O que poucos imaginavam, ainda na década de 1990, era o poder que os agentes de controle teriam sobre as instituições e os atletas. Ou seja, o tiro saiu pela culatra. Criadas para ser uma ferramenta de defesa do jogo limpo, as agências de controle de dopagem têm hoje o poder absoluto de examinar atletas muito, pouco ou nada suspeitos, a qualquer hora do dia ou da noite, obrigando-os a relatar de forma pormenorizada suas agendas de treino e de vida privada.

Como as instituições são aquilo que os seres humanos as fazem ser, muitas dessas agências atenderam a finalidades específicas. Umas protegendo seus atletas. Outras utilizando-os como peças de um jogo de tabuleiro, avançando os que se dispunham a jogar o jogo ou descartando aqueles que se opusessem a ser usados.

Impossível dizer que essa situação não era conhecida, uma vez que muito do que vem a público no presente foi estruturado há algumas décadas.

A polarização vivida décadas atrás deixou de existir, tornando o mundo muito mais complexo, mas no campo do esporte esse passado parece não ter sido superado.

Desvendar a estratégia desse jogo exige conhecimento para além das quatro linhas que demarcam uma quadra. A geopolítica esportiva reflete os avanços e recuos da política internacional.

A revogação da suspensão da agência russa de controle de dopagem aponta que há fatos novos nessa disputa que retirou atletas russos dos Jogos Olímpicos de Verão de 2016 e de Inverno de 2018.

Embora o COI tenha readmitido a Rússia no final de fevereiro, a IAAF (Associação Internacional das Federações de Atletismo) manteve a suspensão aos atletas russos, que podem competir sob outras bandeiras, desde que provem ser limpos.

E assim, as disputas deixam as pistas, quadras, piscinas e se transferem para o campo jurídico, no qual as habilidades atléticas não são determinantes de vitória.

Desvendar as forças que interferem nesses avanços e recuos também leva ao conhecimento de outros fatos que estão na pauta do dia, como a inclusão de novas modalidades ou a escolha da sede de futuras competições.

O que parece evidente é que controlar a vida do atleta individualmente é tarefa fácil. Difícil mesmo é desmontar todo um aparato institucionalizado e protegido pelo Estado. Alguma dúvida sobre a relação entre política e esporte?

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