Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Como definir a atração principal do UFC 229: luta ou briga?

Imaginário envolvido nas lutas permite emergir toda ordem de selvageria

UFC 229 terminou com briga
UFC 229 terminou com briga - AFP

Embora eu me dedique a estudar e pesquisar o esporte olímpico, não me escapam outras manifestações da cultura corporal de movimento, por exemplo, o MMA em sua liga UFC.

Sei que há quem diga que essas manifestações não sejam esportivas, e eu tendo a dizer que são esporte sim, só não são olímpicas, muito embora algumas técnicas venham das muitas artes marciais e esportes de combate presentes no programa olímpico.

E vou além. Há que se lembrar que o pugilato, os primórdios do boxe, fazia parte do programa olímpico dos Jogos da Antiguidade. E, sendo os atletas os melhores soldados, esses lutadores eram formados e treinados na arte da luta para matar ou morrer no campo de batalha. Mas, nos Jogos Públicos, as regras definiam quais golpes eram permitidos e até onde a luta podia chegar.

A nobreza do lutador-atleta era moldada por princípios morais, também conhecidos como valores.

Naquele momento, as competições atléticas, mais do que ser uma disputa contra o outro, representava a superação de si mesmo. E o adversário era uma presença determinante para se alcançar esse objetivo.

A decadência social levou consigo os valores morais das práticas atléticas. Do pugilato derivou o pancrácio, luta que associava várias técnicas. Retirado dos jogos celebrativos, foi levado às arenas públicas, onde os atletas tornaram-se gladiadores e passaram a lutar pela própria vida, uma vez que os combates duravam até que um dos lutadores perecesse.

Observo que na atualidade as lutas exercem grande fascínio em diferentes públicos. O imaginário envolvido nas lutas acaba por evocar um universo mítico que permite emergir toda ordem de selvageria e criaturas monstruosas.

Nessa forma de disputa prevalece uma estrutura maniqueísta onde, obviamente, os mocinhos ganham dos terríveis vilões. Essa estrutura binária reforça a lógica de um ser humano com poderes supremos que aniquila o adversário mais fraco, um perdedor.

Como sou educadora e promovo valores pelo esporte, custo a entender e assimilar essa lógica. Felizmente conheço um pouco da história do esporte e das artes marciais. No Oriente, a formação dos monges e a classe dos Samurais são alguns exemplos da formação de lutadores. Para esses grupos, a formação para o combate estava associada a rituais religiosos, ao estabelecimento de padrões de comportamento e a uma ética particular.

Para o treinamento eram utilizadas formas mais brandas e menos violentas de combate, o que permitiu a transição para a atual esportivização.

Jigoro Kano, o patrono do judô, assim como Gishin Funagoshi, o patrono do caratê, tentaram evitar a inclusão dessa modalidade no programa olímpico pelo receio de que todo o conjunto de valores atrelado àquelas artes marciais se tornassem apenas um combate. Entendiam que o judô era um caminho para muitas coisas, principalmente para a educação, por isso evitou o quanto pôde fazer da luta apenas uma briga.

Como definir a atração principal do UFC 229? Luta ou briga? Agressividade ou violência? O espetáculo midiático que envolveu os dois melhores lutadores da atualidade levanta essas questões.

Claro está que ambos estavam suficientemente bem treinados para enfrentar a competição. Entretanto, descolados da dimensão ética que envolve o esporte, e manipulados pela estrutura espetacular do evento, o combate tornou-se um campo de disputa imoral. O estrangulamento levou a um campeão, mas fez uma luta sem vencedores. É o que acontece quando falta o valor respeito à competição e ao adversário.

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