Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Não existe jogo perdido nem vitória conquistada antes do apito final

Vejo o esporte copiando a vida; como prática social, ele influencia gerações

O esporte é um daqueles fenômenos culturais capazes de nos levar do sofrimento ao êxtase em segundos.

Digo isso porque eu mesma, na beira da quadra, da piscina, da pista e do tatame, na condição de psicóloga, vi e vivi o arrebatamento de alegria e de tristeza.

Eu diria que o esporte é demasiadamente humano por causa disso.

Toda e qualquer modalidade esportiva envolve habilidade motora, treino e estratégia. E por mais preparação que o time ou o atleta individualmente tenha, ninguém controla o imponderável do momento da competição.

Ou seja, plagiando o falecido Abelardo Barbosa, o querido Chacrinha, o jogo só acaba quando termina!

Algumas modalidades, em caso de empate, vão para a prorrogação. Outras funcionam em um sistema de pontos, ou de tempo, que exige uma vantagem justa para proclamar um vencedor.

Mas, o fato é que nenhum placar é determinado de antemão.

Há competições históricas que exemplificam isso. Incompreensivelmente, com toda a vantagem conquistada ao longo de um jogo inesquecível, o vôlei brasileiro feminino em Atenas, 2004, deixou escapar um match point em 24 a 19. Foi-se o set, o jogo e uma medalha considerada ganha.

Como esquecer aquele dia. Depois de ouvir várias das atletas envolvidas naquele jogo entendo que é isso que mais encanta no esporte. Nada está definido.

Nessa mesma linha de raciocínio estão os valores olímpicos. Para mim, o primeiro e mais importante deles é o respeito, base de toda relação humana.

É ele que permite a fala e a escuta tão necessárias ao entendimento e à convivência em sociedade.

Permite um jogo limpo, seja qual for a modalidade praticada. E ali, na disputa justa, honesta, vence o melhor.

Vejo ainda outras situações imponderáveis que marcam a história.

Também em Atenas, 2004, na terra de Fidípides, Vanderlei Cordeiro de Lima liderava incontestavelmente a maratona, quando foi surpreendido por um obstáculo humano que lhe interceptou o caminho.

 

Quebrada a sua concentração e ritmo, ele voltou para a prova, perdeu sua posição de líder, mas não a chegada.

Exemplo de respeito, celebrou a conquista do bronze, e sua atitude ética lhe rendeu uma medalha rara de fair play. Porque assim é o jogo. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar.

Dessa forma vejo o esporte copiando a vida. Como espetáculo, ele mobiliza. Como atividade, ele condiciona. Como educação, ele ensina. Como prática social, ele influencia gerações.

A incorporação do fair play não é uma ação natural. Ela é trabalhada todos os dias, em todos os treinos desde a iniciação esportiva até a carreira internacional.

Valores precisam ser desenvolvidos, trabalhados cotidianamente até se tornarem tão necessários à vida quanto o próprio corpo que materializa a condição de ser atleta.

É assim que o esporte deixa de ser apenas um entretenimento para se transformar em um patrimônio da humanidade.

Por isso todo jogo só acaba quando termina.

Não existe jogo perdido nem vitória conquistada antes do apito final. O risco de todo arrogante é declarar um jogo acabado quando ainda o tempo corre e pode acordar, das entranhas do destino, o imponderável.

Aqueles que desrespeitam essa regra básica da decisão não passaram pela formação de atleta. Nem mesmo de cidadão.

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