Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

A irreverência de um jogador pode mostrar caminhos para uma saída digna

Essa é uma das maiores experiências de esperança que guardo do esporte

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Recentemente me pediram para falar sobre uma cena inesquecível da minha prática profissional com o esporte. E de imediato eu voltei ao ano de 1997 quando eu acompanhava como psicóloga o time de beisebol chamado Giants. Era um grupo que treinava em um campo, próximo à ponte da Casa Verde, hoje tomado por um prédio enorme que abriga o acervo de escolas de samba.

O time era formado por meninos entre 12 e 14 anos, quase todos eles descendentes de japoneses, que treinavam todos os sábados e competiam aos domingos.

Eram a síntese do amadorismo. Durante a semana dedicavam-se às atividades escolares e sociais. Os pais bancavam os materiais, caros, diga-se de passagem. Esses mesmos senhores muitas vezes eram também técnicos, árbitros, mesários, auxiliares. As mães por sua vez eram as provedoras do clube e cedo iam para a cozinha onde preparavam uma comida deliciosa, cuja renda era revertida em benfeitorias ou necessidades mais urgentes. 

Disciplina era a palavra de ordem. O time dirigido por Luizão, um dos melhores mecânicos de carro que já conheci, seguia diligente suas determinações em um treino que começava as 8h e nunca terminava antes das 17h.

No campo de terra batida, em formato de diamante, treinavam-se arremessos, rebatidas, incontáveis sinais que anunciavam uma jogada inesperada, corria-se, saltava-se à exaustão. Afinal, só se tinha o sábado para treinar.

E quase todos os domingos era dia de jogo em campos que demandavam nunca menos de uma hora de viagem. 

E foi num desses domingos que uma das minhas experiências inesquecíveis aconteceu.

Nossos adversários eram os donos da casa. Vários deles pertenciam à base da seleção brasileira. Do nosso lado, um grupo de garotos jovens, inexperientes, porém determinados. Perdíamos de lavada e faltavam dois pontos para que o adversário fechasse a partida. O momento era de desolação. O rosto de Luizão estampava um misto de preocupação, quase desesperadora e um pitaco de ironia, posto que uma de suas marcas registradas era o humor. Ele então virou-se para mim e em seu olhar havia um questionamento claro: o que fazer? Quase tudo já havia sido tentado. Era preciso fazer o inesperado. E ele fez.

Chamou do banco de reservas um atleta que não era a melhor expressão técnica do time, mas tinha uma irreverência sem igual. Muito menos longilíneo que os companheiros, resultado das guloseimas que costuma carregar na mochila, e muito mais irreverente que a média nacional, ele entrou incorporando um personagem cinematográfico. 

Ele não era de fato o principal batedor do time, mas compreendeu perfeitamente a tarefa daquele momento: era preciso quebrar o jogo. 

O herói do dia entrou em campo em grande estilo. Correu por todo o campo como se fosse o campeão.

Chegou na base e começou seu ritual de sinais que já não se sabia se era mesmo a organização da jogada ou um surto de descontrole motor. E milagrosamente ele acertou a bola, não uma, mas várias vezes. A cada ponto marcado corria pelo campo, como se pudesse colocar a todos na competição. Como fogo num rastro de pólvora um novo jogo começou a partir dali. A sensação de derrota iminente foi substituída pela euforia do possível. Os Giants viraram o jogo e venceram. 

Essa é uma das maiores experiências de esperança que guardo do esporte. Por maior e mais forte que seja um adversário, a irreverência de um jogador que entende que diante da vitória iminente nada há mais o que perder, pode mostrar caminhos para uma saída digna.

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