Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

O sacrifício e a vida do atleta

No esporte, o sacrifício é uma tarefa em favor de um objetivo claro, a vitória

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Recentemente fui questionada sobre a extensão do sacrifício na vida do atleta. Resposta óbvia e imediata é aquela que diz que sem dor não há jogo. Como não sou muito afeita a respostas óbvias, passei a refletir junto com meu interlocutor.

Retomando uma trilha mítica, é sempre bom lembrar que as práticas atléticas, atividade muito antiga hoje repaginada e denominada esporte, nasceu para ser uma celebração, um ritual. Nessa condição, as disputas entre pessoas habilidosas tinham a finalidade de aproximar os reles humanos dos imortais. Isso mesmo. A finitude que marca a nossa existência pode ser superada na medida em que formos capazes de realizar algo fora do comum. Ou seja, essas realizações fora da média é que perpetuam a memória do seu realizador.

Por isso dizem que podemos deixar nossa marca no mundo escrevendo um livro, plantando uma árvore ou tendo um filho. Os feitos esportivos poderiam ser somados a essa lista. Atletas, de uma forma geral, podem ser eternizados pela realização de um feito absolutamente distinto da população média.

Para tanto, basta correr 100 metros abaixo de 10 segundos, ou fazer uma maratona abaixo de 2 horas, ou realizar um duplo twist carpado, ou dar um saque jornada com a colocação da bola na quina exata do fundo da quadra, ou ainda finalizar uma luta em poucos segundos aplicando um golpe perfeito, um ippon.

 
O queniano Eliud Kipchoge festeja a vitória na maratona de Viena, onde ele completou a prova com o tempo abaixo de duas horas há duas semanas
O queniano Eliud Kipchoge festeja a vitória na maratona de Viena, onde ele completou a prova com o tempo abaixo de duas horas há duas semanas - Leonhard Foeger/Reuters

Cada um desses exemplos remete a um atleta que o executou. Ou seja, não existe um gesto esportivo que não esteja relacionado à imagem de alguém capaz de desafiar um corpo limitado a realizá-lo. Aí está o encantamento proporcionado pelo esporte.

O sacrifício pode ser interpretado como a privação, a abnegação, a renúncia, o sofrimento, até mesmo a punição ou a penitência, seja na esfera social ou na vida religiosa. No esporte, ritualizado ou profissionalizado, essa condição humana ganha outra dimensão. O sacrifício, mais que uma oferenda aos deuses, é uma tarefa de difícil realização que exige renúncia e privação em favor de um objetivo claro, que é a vitória e a consequente conquista de uma competição.

Observo ao longo dos anos atletas que fazem o impossível (e vi casos que me pareceram verdadeiros milagres!) para chegar ao topo das grandes competições internacionais, mas que não são treinados, preparados para a condição de campeões. Então, viajar, participar e ver de perto seus ídolos, que de fato são seus adversários, já parece ser um grande prêmio.

Por outro lado, há aqueles que focam a prova final e abdicam de tudo mais: não participam do desfile de abertura, do agito da vila, da tietagem e pegação, porque estão lá para buscar um objetivo maior, que é entrar para a história. Alguns desses atletas relataram isso meio que falando de lado e olhando para o chão, como se fosse vergonhoso dizer que tinham sim o desejo de ganhar.

Curiosamente, a fama de alguns desses atletas é de arrogância, antipatia ou ganância.

O esporte é um campo privilegiado para a discussão sobre o mérito. Sorte, atalhos ou atitudes mágicas são de difícil sustentação quando a performance é pública e divulgada para todo o planeta. O momento da disputa final sintetiza a busca pela perfeição que só pode ser conquistada com o sagrado ofício da dedicação que leva à excelência.

Não contesto a condição do esporte como uma manifestação da cultura do liberalismo. Não sou contrária, porém, à atitude de um tipo singular de pessoa que tem a si mesma como a referência do limite a ser alcançado. Isso é humano e é também inegavelmente divino. Somente aos deuses compete a perfeição.

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