Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Como sempre acontece, o esporte imita a vida

Ausência das competições afeta a sociedade e traz consigo uma inércia dolorida

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A quarentena logo vai passar dos 40 dias. Ela não será chamada de “cinquentena”, nem de “sessentena”, embora possa chegar a essas dezenas. Ser denominada como distanciamento social basta para se perceber que tudo está muito diferente.

Como conviver e sobreviver ao isolamento ou distanciamento se o ser humano é essencialmente um ser social? Para compreender este momento só mesmo ouvindo Nando Reis cantando Relicário: “O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou”.

Falcão fez parte da seleção brasileira na Copa de 1982, que teve seus jogos repetidos neste mês
Falcão fez parte da seleção brasileira na Copa de 1982, que teve seus jogos repetidos neste mês - Bob Thomas/Getty Images

O espetáculo esportivo teve que parar, assim como as atividades não essenciais que envolvem pessoas, seres esses vulneráveis ao poder de um vírus. Percebo pelos jornais e pelas redes sociais como o esporte faz falta à sociedade. A ausência das competições traz consigo uma inércia dolorida que apaga toda a trama novelesca que mobiliza o fenômeno: treinos, bastidores, lesões, cartolagem e puxação de tapete.

Diferentemente do cenário musical em que os artistas fazem suas “lives” de casa, da beira de uma piscina luxuriante ou do banheiro, os atletas, mesmo nas modalidades individuais, precisam de um adversário para protagonizar o seu espetáculo. Transmitir treino físico solitário certamente não garante nem 30 segundos de pura emoção. A competição é a alma do esporte e, para isso, é preciso o encontro entre duas ou mais pessoas habilidosas. Assim se produz o encantamento que resiste ao tempo e ainda mobiliza as novas gerações.

Observo com curiosidade a sobrevivência de algumas emissoras, e de uns tantos programas, transmitindo e discutindo jogos do passado. Consagrou-se assim os tempos do spoiler esportivo. Crianças e jovens podem rever jogos consagrados, seja pela conquista do campeonato ou pelo resultado adverso, com a emoção de uma transmissão preparada para ser “como se fosse a primeira vez”.

Pais e mães antecipam as jogadas que resultarão no ponto, ou no gol, da consagração, ou no furo que levou à derrota. E somado a tudo isso vem a inevitável frase “você se lembra que...”. E lá vem a história do tio, da prima, da avó que no momento daquela façanha esportiva aprontou alguma das suas.

A quarentena, e todos os seus desdobramentos, têm oferecido préstimos inestimáveis para os estudos da memória. A cada cena esportiva retransmitida com a respectiva narrativa do que foi aquele momento e o porquê de ela estar sendo retransmitida aponta para a transcendência do esporte e a condição heroica do atleta que protagoniza aquele feito.

Enquanto isso, o presente guarda a tensão do projeto de futuro. Atletas, em suas casas, apartamentos e repúblicas buscam manter vivo o plano e o desejo de ainda fazer a competição que um dia poderá ser revista, recomendada, reanalisada, recomentada como um clássico, um cult esportivo.

Diferentemente do cinema, da novela, da série ou do teatro, o esporte vive da superação de marcas, que é uma ação do presente. Cada segundo, cada centímetro superado de uma ação pretérita mobiliza outros novos atletas a superar a marca estabelecida.

E assim passam os anos, as décadas, os séculos, e o tempo faz a função de filtro para aquilo que permanece para ser reprisado em uma nova quarentena planetária, preenchendo o espaço das competições que não podem ser realizadas em função do isolamento social.

Enquanto isso, o que nos resta nessa convivência virtual é assistir às lutas, não esportivas, que mobilizam torcidas e atenções. Pelo visto, poucos atletas participam dela, afinal, o que temos visto é que vale golpe baixo, dedo no olho e até mesmo xingar a mãe do juiz, que a essa altura do campeonato, poderia guardar sua honra para contendas mais nobres.

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