Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

É preciso coragem para falar a verdade sobre o adiamento da Olimpíada

Desde o início da pandemia, tornou-se preciso repensar os Jogos Olímpicos

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Nascida e criada dentro de uma família materialista dialética, não tive tempo de cultivar ilusões relacionadas a Papai Noel ou coelhinho da Páscoa. Mais do que fantasia de criança, isso era considerado mentira e, para o patriarca Rubio, a mentira não era uma verdade que se esqueceu de acontecer... era simplesmente uma imoralidade.

Passado mais de meio século de vida, consigo hoje entender que a verdade é uma construção que demanda inteligência e capacidade de argumentação. Depende da concepção de mundo, do ponto de vista e, acima de tudo, do caráter de quem constrói a ideia a ser defendida.

A mulher com máscara protetora passa em frente aos anéis olímpicos em Tóquio
A mulher com máscara protetora passa em frente aos anéis olímpicos em Tóquio - Issei Kato-30.mar.20/Reuters

Mais recentemente, passou a depender também de quem participa da conversa, como interlocutor ou simplesmente como ouvinte. Cada vez mais, a verdade deixou de ser ato construído pela razão para ser apenas questão de fé.

Desde que a Covid-19 se tornou uma pandemia que fez o planeta se rever e se isolar, tenho defendido a necessidade de repensar o esporte, e particularmente, os Jogos Olímpicos de Tóquio. No princípio, os organizadores negaram que haveria qualquer prejuízo à sua realização, prorrogando ao máximo a notícia do adiamento, que só ocorreu depois da ameaça de boicote por parte de alguns comitês olímpicos.

Desde então, ficou claro que já não haveria mais Jogos Olímpicos, aquela celebração quadrienal, pautada em um ritual mítico milenar criado na Grécia sete séculos antes de Cristo. Por mais que eu saiba que os Jogos contemporâneos quase não guardam relação com a celebração do passado, é justamente o imaginário heroico herdado dessa tradição que move e mobiliza todo o negócio no qual são gastos os bilhões de dólares do poder público e da iniciativa privada que bancam essa “festa”.

Eu não tenho ilusões sobre o que sejam os Jogos Olímpicos da Era Moderna. Isso não quer dizer que não compreenda aquilo que mobiliza pessoas nos quatro cantos do mundo a se tornarem atletas. E mais, o que leva outras tantas pessoas menos habilidosas a se deslocarem para assistir, no local do evento, aos feitos quase divinos de atletas incríveis, os seres capazes de materializar a magia de um momento raro.

Ou seja, eu posso ser mobilizada por tudo o que a competição olímpica implica para o mundo, mas não sou ingênua.

Quando foi anunciado o adiamento, imediatamente pontuei que, se realizados em 2021, os Jogos já não mais seriam olímpicos. Por uma simples razão: quebrou-se um ritual.

Os rituais servem para conferir um pouco de sacralidade ao mundo profano em que vivemos. E a humanidade precisa, como nenhuma outra espécie, de celebrações que afirmem a própria existência.

Por isso, os batizados, os casamentos, os velórios. Há datas que marcam esses momentos. O Natal em dezembro, a Páscoa no primeiro final de semana de lua cheia do outono (no hemisfério sul), o Carnaval 40 dias antes e Corpus Christi 60 dias depois. Os Jogos Olímpicos devem acontecer de 4 em 4 anos, faça chuva ou faça sol, com ou sem Covid, haja ou não guerra.

Esta semana começou-se a falar abertamente sobre o cancelamento dos Jogos de Tóquio. Finalmente. O negócio já está garantido. As companhias de seguro bancarão o prejuízo do cancelamento, o valor dos ingressos será devolvido a todos que já haviam comprado.

Mas, pouco ouço falar sobre o ônus na vida de atletas. É tempo de se ter coragem e parar de mentir, de enganar, de protelar uma determinação que colocará fim a muitos projetos de vida, inclusive de pessoas que já tinham índice ou vaga garantida. Isso sim seria uma atitude olímpica.

Erramos: o texto foi alterado

O feriado de Corpus ​Christi é celebrado 60 dias após a Páscoa, não 40. O texto foi corrigido.

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