Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Presença feminina solitária de Aída em Tóquio-1964 ainda diz muito

A produção do esquecimento opera por meio da manipulação do presente

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A memória é um gesto essencialmente humano por somar afetividade, cognição, historicidade e cultura. Tem como figura central a pessoa que narra o que recorda. Nela estão contidas as marcas do tempo e dos grupos sociais aos quais pertencemos. Por isso, a memória humana não se baseia na história aprendida, mas na história vivida.

Por isso, a memória social é a essência do conhecimento coletivo, reconhecido por um grupo pautado em um contexto. Distante de ser uma reprodução das experiências passadas, a memória é feita de informações que se acumulam a partir do contato com referências, como vídeos, fotos, livros e outras fontes que recriam um evento, tornando-o menos esquemático e mais completo.

Se a memória é em parte herdada e não se refere apenas à vida física da pessoa, é certo que ela sofre flutuações em função do momento em que está sendo processada e manifestada. Os acontecimentos vividos pessoalmente e aqueles compartilhados pelas lembranças de outras pessoas se fundem, tornando quase indistinto o que é lembrado como vivido ou como construído a partir das referências externas.

A ausência da memória envolve a amnésia e o esquecimento. A amnésia é a perda total ou parcial da capacidade de recordar experiências ou acontecimentos. Ela pode ser ocasionada por dano neurológico, trauma ou doença degenerativa. A depender da causa, a perda da memória é total ou parcial, temporária ou permanente.

O esquecimento, por sua vez, pode ser entendido, como ensina Paul Ricoeur, como apagamento de rastros ou esquecimento de reserva, que implica a ideia de inesquecível ou o esquecimento total. Consciente e deliberado, ele atende a fins específicos, principalmente de criar a memória que se deseja sobre alguém ou um fato.

Esta semana recebi uma foto de jornal da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio-1964. Desbotada, em preto e branco, amarelada pelo tempo, ela é o registro de um fato. Alguns diriam que é um retrato da realidade. Eu diria que é um espelho de um momento que diz muito do que era o esporte no Brasil e no mundo.

Reprodução de imagem da comitiva olímpica brasileira de 1964, onde a saltadora Aida dos Santos era a única mulher
Reprodução de imagem da comitiva olímpica brasileira de 1964, onde a saltadora Aida dos Santos era a única mulher - Ricardo Borges/Folhapress

Em primeiro plano vinha o porta-bandeiras da delegação. Logo atrás dirigentes esportivos e a delegação de atletas. Não tivesse eu o olhar atento produzido pelo conhecimento das centenas de narrativas biográficas de olímpicos e olímpicas brasileiras, talvez eu também não observaria a presença de um única mulher, Aída dos Santos, em meio àquela massa masculina.

A presença solitária de Aída continua a dizer muito.

Apresentada a um grupo composto por muitos atletas e pessoas bem informadas, a foto, como era de se esperar, causou impacto. Aos mais velhos, suscitou a lembrança das medalhas conquistadas e dos feitos dos homens ali presentes. Poucos falaram sobre o significado daquela presença singular.

Os mais novos nada sabiam sobre aquela cena e a sua protagonista, afirmando assim o desconhecimento sobre a história do esporte brasileiro e, principalmente, dos atletas, razão de ser do esporte.

Poderia ser apenas mais um diálogo em um grupo de rede social, mas não. Sei muito bem o que implica a falta de conhecimento sobre o passado e os antepassados. A produção do esquecimento opera por meio da manipulação do presente e pode ser recriada conforme convém a quem está no poder.

Entendo que deveria fazer parte da formação dos atletas brasileiros, pelo menos, a história da própria modalidade. Assim, talvez fizesse mais sentido as autorizações e impedimentos do presente e a razão de ser do mote olímpico “o atleta como modelo ideal”.

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