Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio
Descrição de chapéu Maradona (1960-2020)

O que diferenciava Maradona era capacidade de expressar mundo em que vivia

Dieguito foi pura paixão, como são as letras das milongas

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Desde a primeira vez em que pus os pés em Buenos Aires e pude conhecer de perto a alma portenha, me encantou o ufanismo de nossos vizinhos do sul. Avenida 9 de Julho, “la mas ancha del mundo”. Aeroporto de Buenos Aires-Ezeiza, o mais moderno do mundo. Diego Armando Maradona, o melhor jogador de futebol do mundo.

Até então, eu ouvia e lia coisas sobre os argentinos e a imagem que tinha de tudo aquilo era anedótica. Para mim, os comentários depreciativos a “los hermanos” vinham de uma certa inveja pela tradição aristocrática europeia, por terem neve no inverno e por fazerem uma carne e um vinho inegavelmente muito bons.

À medida que o tempo passou fui compreendendo um pouco das sutilezas daquela nação. Mesmo sob uma ditadura feroz, foi capaz de produzir cultura e pensamento crítico que até a atualidade é referência. De lá temos Quino, recentemente falecido, e a impagável Mafalda.

Se Gardel, foi o ídolo da primeira metade do século 20 com sucessos como “Mano a mano” ou “Por una cabeza”, vieram depois Atahualpa Yupanqui com canções como “Duerme negrito”e “Los Hermanos”, imortalizada nas vozes tanto da compatriota Mercedes Sosa quanto de Elis Regina.

Depois que comecei a estudar psicologia, descobri a potência dessa área de conhecimento, que foi uma trincheira de luta contra a ditadura fratricida de Videla, Viola, Gualtieri e Nicolaides.

Muitos psicanalistas migraram para um Brasil também perseguido pelo autoritarismo. Mas foram Baremblitt, com o entendimento da psicologia social, e principalmente Pichon-Riviére, com a psicologia dos grupos e seu amor pelo futebol, que me mostraram o quanto havia de saber naquela terra que começa na fronteira com o Brasil e acaba no fim do mundo, como chamam o extremo sul do país.

Foi nesse país múltiplo e singular que nasceu o gênio do futebol Diego Maradona. Genial com a bola nos pés, esbanjava prazer naquilo que fazia e, por isso, encantava. Fazia da pelota uma extensão de seu corpo e magicamente a colocava onde desejava, para desespero dos adversários. Mas características como essas muitos outros têm, seja na metrópole ou na colônia.

O que diferenciava Maradona de outros era sua capacidade de expressar o mundo em que vivia. A concessão e a bajulação não pareciam fazer parte de suas atitudes ou vocabulário.

Ciente de seu papel social como porta voz de causas que afligia seu povo, uniu a habilidade motora com a potência de sua visibilidade social para mostrar ao mundo a falácia da afirmação de que esporte e política não se misturam. Ele provou o quanto essas práticas sociais são próximas e indissociáveis.

Mesmo depois de fazer a transição de carreira, continuou a atrair a atenção da mídia e dos fãs. Foi um torcedor apaixonado da seleção que defendeu. E foi também seu técnico. Sabia como ninguém o valor da camisa que vestiu e com ela manteve não uma relação formal, como determina o protocolo a ídolos insípidos, inodoros e incolores.

Dieguito foi pura paixão, como são as letras das milongas.

Sua estrela agora brilha no panteão dos imortais. Resta dele imagens registradas em diferentes campos, com ou sem grama. Segue com ele a marca de alguém que transitou pela vida tirando dela tudo o que havia de mais precioso e potente, como foram seus chutes a gol. Leva consigo o afeto doce e o amor ensandecidos de “hermanos” que não se podem contar. E certamente seguirá para a imortalidade com sua irmã “muy hermosa”, chamada liberdade.

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