Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Incomoda quando alguém se refere a um ser humano estúpido como um animal

Canalha é canalha, jamais asno, cachorro, tigrão ou jumento

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Na última semana, meu gato Orfeu aprontou mais uma das suas. Numa vacilada do meu filho, o felino puro-sangue vira-lata saiu feito um corisco pela porta. Era sábado à noite, e Orfeu caiu na vida, certamente em busca da aglomeração desejada por todos nós, desrespeitando distanciamento social, uso de máscara e álcool em gel. Levou com ele o desejo de todos os moradores da casa de experimentar a liberdade tão cara a nós.

Imaginei que ele, como um bom adolescente, fosse miar altas horas da madrugada para que a porta fosse aberta, mas para meu desespero isso não aconteceu. Ele não voltou para casa nem no domingo, nem na segunda-feira. Meu coração de mãe dizia que estava tudo bem, que ele só precisava de uma saída mais longa para manter viva sua alma de gato livre.

Mantive a rotina de chamá-lo pelo nome, agitando a embalagem do biscoitinho junto com o sino da igreja que bate às 18h. Fica aí a dúvida se o condicionamento operante era para ele ou para mim. Em minhas redes sociais, postei a foto do fujão mesmo sabendo que ninguém, exceto quem o alimenta, é capaz de pegá-lo.

Gato de pelagem cinza e branca olha para a câmera
Orfeu, o gato fujão da colunista Katia Rubio - Arquivo pessoal

Fato é que certa noite ouvi o miado de sempre na porta da cozinha e lá estava ele. Como se tivesse acabado de sair para dar uma volta, pediu para entrar. Magro e sujo, correu para a vasilha de comida e se fartou, depois fez uma graça para os humanos de estimação e foi dormir. E a felicidade voltou a reinar em casa.

Vivendo a irrealidade cotidiana destes tempos pandêmicos, agradeço ao universo pela existência dos animais que permitem que a rotina seja preenchida com atos que transbordam afeto mesmo nos dias mais difíceis. Os animais me permitem manter distância do que há de pior, como as mortes, a fome e a atitude negacionista que assola este país.

Por isso fico tão incomodada quando alguém se refere a um ser humano estúpido, calhorda, tunante, biltre, sacripanta como um animal. Canalha é canalha, jamais asno, cachorro, tigrão ou jumento.

Quando li a notícia sobre a falsificação de 57 exames de Covid-19 em um time da Série B2 do futebol do Rio, fiquei indignada, óbvio, mas não surpresa. A atitude abjeta de pessoas ligadas à modalidade naturaliza esse procedimento. O relatório do TJD-RJ mostra que não houve “burrice” no processo, e sim má-fé, uma prática antiética e antidesportiva por ferir direitos basilares, colocando em risco a saúde pública e a vida.

A punição pedida para os envolvidos no caso pode levar à suspensão das atividades esportivas, por tempo determinado, e multa. Consideram as autoridades que mais do que tudo é preciso salvar a imagem das organizações envolvidas nas competições, por isso seu caráter punitivo-pedagógico.

A “tigrada” dos cartolas do futebol do Rio aponta para a irracionalidade (ou seria mesmo negacionismo?) que cerca alguns dirigentes que bradam que o show não pode parar. Não canso de repetir que todas as vidas importam. Humanos vivem em sociedade, não em hordas ou bandos, ainda que muitos líderes pareçam ainda Neandertais. Caracterizo assim esse grupo porque a comparação com qualquer animal selvagem seria um desrespeito.

Atletas parecem ser sobre-humanos, mas os fatos presentes mostram que não. Nos últimos dias faleceram dois atletas olímpicos acometidos de Covid-19. Jean Luc Rosat, o Suíço, olímpico do voleibol em Moscou-1980, e Roseli Machado, vencedora da São Silvestre de 1996 e olímpica dos 5.000 m em Atlanta no mesmo ano.

Torço para que o anfitrião do Grupo de Estudos Olímpicos em 2016, Roosevelt Velloso, seja um dos que sobrevivem à intubação. Eles não são números dentro dessa estatística monstruosa que vivemos, e por todos eles eu manifesto o meu pesar.

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