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No Brasil, a morte pela Covid é social e politicamente determinada

Ela tem cor, classe, renda e escolaridade

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Camila De Mario

Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de sociologia política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Universidade Cândido Mendes

O "think thank" australiano Lowy Institute realizou uma pesquisa sobre a capacidade de resposta dos países à pandemia.

A partir dos dados coletados, organizaram um ranking cujo resultado demonstra que são muitos os países que vêm enfrentando dificuldades e atuando de forma ineficaz no controle da pandemia. Entre eles, o Brasil ocupa a pior posição.

O ranking foi elaborado considerando a quantidade de casos e mortes confirmadas; a proporção de casos e mortes por milhão de habitantes; a quantidade de casos confirmados versus a proporção de testes aplicados, e de testes por mil habitantes.

O Brasil figura na pior posição entre os 98 países com dados disponíveis avaliados. Na ordem, os cinco piores são: Brasil, México, Colômbia, Irã e EUA.

A atuação do governo brasileiro

A atuação do governo brasileiro não é apenas ineficaz. Há uma intenção de não combate à pandemia, com o estabelecimento de uma estratégia institucional de propagação do coronavírus, como mostrou pesquisa do Cepedisa (USP)/Conectas Direitos Humanos.

O presidente Jair Bolsonaro no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília - Pedro Ladeira - 3.fev.2021/Folhapress

As ações em saúde foram inicialmente conflituosas e dúbias, oscilaram entre a promoção da prevenção e a negação.

Porém a estratégia brasileira se consolidou e se desenrolou da negação do vírus e da pandemia, passando pela minimização da gravidade da Covid-19, desembocando em um sistemático desestímulo ao uso das máscaras e desincentivo à vacinação, tudo reforçado pela venda de uma grande ilusão: a promessa de um tratamento profilático e curativo encarnado pelo chamado “Kit Covid-19”.

Estratégia exitosa. A pesquisa PNAD Covid-19, realizada em setembro de 2020, mostra que dos 8,3 milhões de pessoas que tiveram sintomas de síndrome gripal, apenas 2 milhões buscaram atendimento médico.

Do restante, 71,6% optaram por ficar em casa como uma providência, e 57,8% declararam que se automedicaram.

O Kit Covid-19

Mesmo sem qualquer comprovação cientifica, o Kit Covid-19 “viralizou”, principalmente porque foi recomendado, produzido e distribuído pelo Ministério da Saúde, receitado por muitos médicos, enquanto Jair Bolsonaro nunca perdeu uma oportunidade para promover o pretenso potencial curativo desses medicamentos, e de aparecer publicamente sem máscara e em aglomerações.

A ivermectina, remédio contra piolho, é um deles. Foi indicada para uso profilático, e inclusive distribuída gratuitamente para a população por algumas secretarias de saúde municipais.

Recomendou-se uso contínuo “ao longo da pandemia”. O medicamento deveria ser tomado, em dose indicada por médico, a cada 15 dias, frequência necessária para manter o “nível plasmático do medicamento no organismo das pessoas enquanto durar a pandemia”.

Não é raro encontrar pessoas que adotaram a prática, sem qualquer acompanhamento médico e ignorando completamente os riscos aos quais estão expondo sua saúde.

O Kit Covid-19 faz sucesso em uma sociedade de cultura curativa, habituada à automedicação, é verdade.

Mas seu maior êxito é libertar as pessoas: para o trabalho (claro!), mas também para uma livre circulação, para a organização de festas, das comemorações familiares às grandes aglomerações, do Ano-Novo ao Carnaval.

Recentemente, ganharam destaque na mídia banhistas nas praias da cidade de Santos afirmando que a Covid-19 não existe, ou que um médico de confiança teria dito que é só fazer uso do Kit-Covid-19, pois a doença não passaria de uma gripezinha.

Alguns entrevistados reverberam o discurso de Bolsonaro, que não cansa de nos lembrar que “vamos todos morrer um dia!". Mas o “vamos todos morrer” reverberado nas areias das praias vem seguido de: “Se eu posso andar de ônibus, trem ou metrô para trabalhar, eu posso frequentar a praia aos finais de semana”.

Quando o risco individualizado e a naturalização da morte se impõem como condição para sobrevivência, estratégias preventivas e coletivas de saúde como as necessárias para a preservação da vida durante a pandemia perdem sentido. É a essência do Sistema Único de Saúde (SUS) posta em xeque.

Pandemia e desigualdades

Decisões e discursos políticos importam. Eles conduzem comportamentos, têm o potencial de promover o caos ou a coesão social. Em tempos pandêmicos, seus impactos são absolutamente evidentes.

No Brasil, o comportamento induzido se traduz em vertiginoso aumento do número de casos, no surgimento de novas variantes do vírus, na falta de insumos essenciais (a exemplo do oxigênio em Manaus), na explosão do número de mortos.

Essa é apenas a ponta do iceberg.

Dados da PNAD Covid-19 e do banco de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), analisados pelas pesquisadoras Lígia Bahia e Jéssica Pronestino, evidenciam as desigualdades reproduzidas e aprofundadas pelo caos, e a falácia contida no “vamos todos morrer”.

De acordo com a PNAD, 28,6 milhões de pessoas no Brasil fizeram testes de infecção por coronavírus, das quais 6,3 milhões testaram positivo. Dentre aqueles com renda entre meio salário mínimo e um salário mínimo, 9,9% fizeram o teste; entre um e dois salários mínimos, 14,4%; entre aqueles que ganham quatro ou mais salários mínimos, observamos um salto: 29,3% foram testados.

A letalidade foi mais alta justamente entre os mais pobres.

A análise mencionada mostra que dentre os pacientes internados com casos confirmados de SRAG, considerando sua cor/raça, a letalidade foi de 56% entre os brancos e de 79% entre os não brancos.

Quando olhamos a proporção de mortos por nível de escolaridade, verificamos maior letalidade dentre aqueles que cursaram até o fundamental 2: 71,3% de óbitos entre os sem escolaridade; 59,1% entre os que cursaram até o fundamental 1; 47,6% entre os que cursaram até o fundamental 2.

Nos níveis médio e superior vemos a letalidade cair: 35% dentre aqueles que têm nível médio, 22,5% para os que têm nível superior.

A morte por Covid-19 tem cor, classe, renda e escolaridade. É social e politicamente determinada. A saúde é socialmente determinada.

Ao que parece, o governo desaprendeu essa valiosa lição. Essa é uma evidência observada também em outros países, mas agravada no Brasil.

Neoliberalismo e saúde

A pandemia, e a atuação de países como o Brasil, nos colocam perante dois desafios urgentes e complementares, especialmente sensíveis para os sistemas públicos de saúde.

O primeiro é compreender a potência e os impactos do projeto neoliberal em nossas sociedades e buscar caminhos que permitam uma reação.

O segundo é resgatar e renovar o debate conceitual e político dos determinantes sociais da saúde e afirmar para os cidadãos a importância de os gestores públicos atuarem a partir deles e sobre eles.

Nesse contexto, o neoliberalismo se manifesta na falta de horizontes, individuais e coletivamente partilhados; no presentismo que prende as pessoas nas urgências do cotidiano.

Com as possibilidades de sobrevivência reduzidas à gestão individual do risco, o indivíduo dispensa o coletivo, é responsável por sua sorte e, perversamente, por sua saúde, o que torna encantadora a falaciosa promessa de cura do Kit Covid-19.

O apagamento do social paulatinamente promovido pelo projeto neoliberal no Brasil está no centro da crise que enfrentamos hoje. É preciso resgatar a centralidade da comunidade se quisermos que a morte não seja o único horizonte possível.

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