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A Argentina e o amado Bukele

Quando os governantes, ex-governantes e líderes propõem outros atalhos em nome do povo, opondo a democracia à república, só podemos desconfiar e advertir para onde eles nos conduzem

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Fabián Bosoer

Cientista político, jornalista, editor-chefe da seção de opinião do diário argentino Clarín, professor da Universidad Nacional de Tres de Febrero e da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais).

Em El Salvador, o Congresso, controlado por uma maioria esmagadora do partido do governo, decidiu, em 1º de maio, remover a Suprema Corte e o Procurador Geral da República. O Presidente Nayib Bukele, de sua conta oficial no Twitter —ele não precisa de comunicados oficiais, conferências de imprensa ou discursos da sacada, um tuíte é suficiente para o presidente salvadorenho que governa através das redes sociais— assinou a decisão: “E o povo salvadorenho, através de seus representantes, disse: ‘destituídos’”. E foi isso.... Assim mesmo, o presidente e o parlamento que segue seus ditames apagaram a divisão de poderes com um golpe de caneta e nomearam um novo procurador geral e juízes supremos, que assumiram imediatamente o cargo acompanhados pelas forças policiais. Adeus Estado de Direito, caminho pavimentado para a “democracia cesarista” ou “autocracia eletiva”, dependendo de como se queira ver.

Imagem em primeiro plano mostra o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, sentado de frente para um microfone
O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, participa de uma reunião com embaixadores credenciados na Casa Presidencial em San Salvador - Reuters

É a mesma concepção que os líderes, políticos, ex-governantes ou atuais altos funcionários nos países latino-americanos sustentam. Na Argentina, eles são os “cruzados anti-Lawfare”, liderados pela vice-presidente Cristina Kirchner. O ex-vice-presidente Amado Boudou, em uma aula virtual com estudantes da Universidade de Buenos Aires no dia 3 de maio, explicou assim: eles argumentam que vivemos em “democracias condicionadas” por “poderes factuais” que não respondem à vontade popular. De tal modo, aqueles que governam em nome do povo ou representam “os movimentos populares” não têm realmente o poder: o poder é detido por outros.

“Do que falamos quando falamos de lawfare?”, pergunta Boudou. “É um dispositivo de controle social, estamos falando de democracia condicionada e alterada por mecanismos institucionais e institucionalizados”, afirma ele. Ele diz que se trata de “coisas que estão acontecendo do México até Terra do Fogo” e salienta que não se trata de “uma invenção de um espaço político”. Segundo o ex-funcionário, é “um dispositivo disciplinar. É a perseguição, o horrível espetáculo público do castigo”. Ele também diz que os tribunais “se tornaram paródias” e que o objetivo do lawfare são os políticos, sindicalistas e líderes que “pretendem transformar a realidade”.

Esta defesa é apresentada como um álibi retórico elaborado para encobrir o que nada mais é do que uma batalha política pelo controle de todas as alavancas do Estado. Em alguns casos, para evitar a investigação e punição daqueles que possam ter cometido ou tenham cometido atos ou fatos de corrupção por parte do poder político. Em outros casos, para se livrar das travas, controles e contrapesos que limitam as ações dos líderes e governantes que acreditam precisar, ou merecer, poderes excepcionais para exercer o poder.

A Argentina não é El Salvador, porque lá Bukele é o presidente e em Buenos Aires, o ex-vice-presidente que compartilha suas opiniões, está cumprindo sua pena, condenado por corrupção durante seu tempo em cargos públicos.

Enquanto isso, uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça argentino, que colocou limites aos poderes excepcionais do governo nacional para enfrentar a crise sanitária resultante da pandemia de Covid-19, provocou mais uma enxurrada de fúria oficial contra a mais alta corte, com os mesmos argumentos utilizados pelo jovem presidente salvadorenho. Os juízes não foram votados pelo povo; eles agem como um “poder contra-majoritário”, eles mantêm, como se isso não fosse sua função constitucional em um estado governado pelo Estado de Direito. Isto leva a pensar que se a Frente de Todos, a coalizão que governa a Argentina, vencesse 70% dos votos que permitiram a Bukele ter seu próprio Parlamento nas próximas eleições, a julgar pelo que foi dito, nada a impediria de tentar seguir o caminho salvadorenho, remover os membros do Tribunal e nomear juízes que acompanham o governo. ​

Nada, realmente, que não tenhamos visto no passado. “O que está acontecendo em El Salvador, foi escrito em redes sociais, mostra que se a demolição da democracia liberal é acompanhada por maiorias populares, ela é imparável”. Mas quem fala em nome de quais “maiorias populares” e o que acontece quando o povo perde essa democracia liberal nas mãos de caudilhos, ditadores ou líderes descontrolados?

A questão é tão antiga quanto nossas próprias Repúblicas do Novo Mundo, “a experiência política latino-americana do século XIX”, título de uma maravilhosa obra de Hilda Sábato (Taurus, 2021), que reconstrói a gênese dos conflitos e encruzilhadas que marcaram nossa história e continuam a nos acompanhar. Por trás dos recorrentes conflitos de poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário podemos encontrar, e este seria o caso, um conflito entre duas concepções opostas sobre a própria natureza do poder em uma democracia. E é verificável que não é o desmantelamento institucional das repúblicas, mas seu fortalecimento, que é o caminho para a consolidação de nossas democracias, que não pode deixar de basear-se na divisão de poderes e no Estado de Direito. Quando governantes e líderes propõem outros “atalhos” em nome do povo, especialmente quando o fazem encobrindo suas próprias responsabilidades e erros, só podemos suspeitar e avisar para onde nos conduzem.

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