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Pandemia, periferia e poder

A crise da Covid-19 não é apenas sanitária ou econômica é também uma crise de distribuição de poder

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John Cajas Guijarro

Economista e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Central do Equador. Candidato a PhD em Economia do Desenvolvimento na FLACSO-Equador. Especializado em economia política teórica, equatoriana e mundial. Assessor de movimentos sociais e políticos.

A pandemia provocada pelo Covid-19 é um dos eventos mais complexos que enfrenta o capitalismo global desde a Segunda Guerra Mundial (como declarado pelas Nações Unidas). De acordo com informações compiladas pela Universidade Johns Hopkins, a pandemia já causou mais de três milhões de mortes confirmadas. De fato, em comparação com as doenças que mais mortes causaram em 2019, segundo informações da Organização Mundial da Saúde, a Covid-19 ocupa a quarta posição.

Apesar de um impacto tão generalizado, a situação não atinge a todos por igual. A pandemia se combina com outros problemas globais pré-existentes, surgindo assim uma crise multidimensional. Em particular, a crise sanitária agrava as grandes desigualdades do mundo e vice-versa. Um exemplo é o escasso acesso aos testes diagnósticos da Covid-19 em países de renda baixa e média-baixa. Apesar de representar 46,8% da população mundial, estes países têm acesso a apenas 21,6% dos testes do mundo. A África Subsaariana é um caso drástico pois, apesar de representar 14% da população, ela só participa de 1,4% dos testes.

De acordo com um estudo de próxima divulgação, realizado pelo autor desse artigo sobre a economia política da crise da Covid-19, outro exemplo dramático de como a pandemia e a periferia capitalista criam o pior de todos os mundos é refletido em um potencial "apartheid de vacinas".

A combinação de sistemas globais de patentes, a concentração das capacidades científicas e técnicas em poucos países, e inclusive os interesses das grandes farmacêuticas, limitam enormemente a capacidade das nações empobrecidas de acessar as vacinas contra a Covid-19. Revisando informações de 164 países, pode-se encontrar uma relação direta entre a renda per capita e a vacinação: em média, cada 1% de aumento na renda per capita está associado a um aumento de 1,34% nas taxas de vacinação.

O fato de as regiões mais pobres do mundo não vacinarem suas populações de forma abrangente, enquanto as regiões mais ricas adquirem vacinas em excesso, tem efeitos claros. Enquanto Israel ou Estados Unidos estão considerando levantar as restrições graças à vacinação, a crise da Covid-19 está criando um inferno no Brasil e na Índia. É claro que, além da combinação de pandemia e periferia, também são relevantes os tratamentos irresponsáveis da crise. Tanto Jair Bolsonaro no Brasil quanto Narendra Modi na Índia lidaram com a situação de forma desastrosa.

Mas a gravidade da crise da Covid-19 transcende tal irresponsabilidade. Vamos apenas perguntar como os países empobrecidos podem administrar eficientemente uma pandemia global quando são vítimas históricas de processos de intercâmbio desigual, superexploração da mão-de-obra, extrativismo, acumulação por despossessão e outros problemas estruturais?

O resultado de todos esses fatores leva esses países a se desenvolverem em condições de enorme incerteza. O mercado de trabalho latino-americano exemplifica esta questão. No início da pandemia, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que 54% da população trabalhadora estava empregada informalmente, enfrentando a incerteza de garantir sua subsistência diária nas ruas diante da ameaça de contrair o vírus e das diversas medidas de confinamento.

Paradoxalmente, até mesmo os efeitos da pandemia sobre o emprego são incertos. Ao contrário de outras crises, após um ano, as estimativas da OIT sugerem que o emprego informal caiu mais acentuadamente do que o emprego formal. E a incerteza aumenta ao incluir na análise outras complexidades que a região está vivendo, tais como fragilidade fiscal, difícil acesso ao financiamento externo e até mesmo a instabilidade política e institucional.

Pandemia, periferia e incerteza são três dimensões que devem ser levadas a sério na compreensão da economia, da política e, em geral, dos fenômenos sociais durante a crise da Covid-19. A pandemia como o problema imediato a ser superado para salvar vidas; periferia como uma região que deveria receber atenção prioritária em termos de testes, vacinas e apoio financeiro internacional; e incerteza como o novo paradigma dominante em etapas de crises prolongadas.

Com certeza, em nível econômico, os períodos de crise e de profunda incerteza se tornaram mais agudos, mas não começaram com o coronavírus. Já como resultado da crise financeira internacional de 2008-2009, surgiram importantes desafios à maneira de pensar e fazer economia. Entre elas, podemos destacar as 33 teses para a reforma da economia difundidas em 2017 pelo grupo Rethinking Economics e o New Weather Institute.

Duas dessas 33 teses podem ser destacadas. A primeira é a Tese 14, que afirma que os "salários, lucros e retornos sobre os ativos dependem de uma ampla gama de fatores, incluindo o poder relativo dos trabalhadores, empresas e proprietários de ativos, e não simplesmente de sua contribuição relativa à produção". A tese 18 constata que "os mercados frequentemente apresentam uma tendência ao aumento da desigualdade".

Se a crise financeira motivou estas questões, a crise da Covid-19 – de maior impacto humano – exige questionamentos mais profundos. Nesta discussão é urgente destacar, como R. Horton sugere em um artigo no The Lancet, que a crise do Covid-19 gerou disputas sobre o exercício do poder nas sociedades: "governo central versus governo local, jovem versus velho, rico versus pobre, negro versus branco, saúde versus economia". Em outras palavras, a crise da Covid-19 não é apenas uma crise sanitária ou econômica, é também uma crise de distribuição de poder.

Se não discutirmos esta distribuição de poder, continuaremos presos em falsas dicotomias que escondem o fato de que o mundo possui uma enorme riqueza que poderia ser usada durante a crise. Os economistas Saez e Zucman estimam que, somente nos Estados Unidos, 10% dos contribuintes concentram quase 80% de toda a riqueza (uma porcentagem que vem crescendo desde os anos 1980). Na América Latina, os economistas Alarco Tosoni e Castillo Garcia estimam que, em 2016, apenas 87 milhões de pessoas atingiram um patrimônio líquido de 373 bilhões de dólares, um valor superior ao PIB nominal da Venezuela, Colômbia ou Peru.

Tal riqueza poderia financiar a subsistência das populações marginalizadas durante a pandemia com medidas como, por exemplo, impostos sobre grandes rendimentos e riqueza, renda básica universal, seguro de saúde universal, e similares. Mas se as relações de poder —locais e globais— não mudarem, tais medidas permanecerão apenas boas intenções que sufocarão até a morte na pandemia... da incerteza.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do publicado, 87 milhões de pessoas alcançaram patrimônio líquido de 373 bilhões de dólares​ em 2016 na América Latina, e não 87 bilhões.

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