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Por que só vacinar não resolve: a ansiedade pela normalidade sem volta

Governo passou recado errado na pandemia, e pessoas ansiosas não pensaram duas vezes para incorporá-lo

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Camila De Mario

Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de sociologia política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Universidade Cândido Mendes

A pandemia de Covid nos colocou diante de uma complexidade de desafios cujas urgências confrontam o tempo.

O tempo da ciência, o tempo da gestão pública, o tempo da gestão individual de nossas carências e das necessidades mais básicas do nosso cotidiano, inclusive o tempo do nosso imediatismo.

A capacidade de produção de uma política pública que se sustente ao longo do tempo depende de diferentes fatores, como coordenação das ações, realização de monitoramento das condições de vida e impactos das ações públicas, produção de conhecimento e informação, constante avaliação dos resultados e, por fim, uma boa comunicação com a população.

Saúde e boa gestão da crise sanitária

Ao definirem o que é saúde, as políticas de saúde conduzem comportamentos –um verdadeiro controle dos corpos individuais e coletivos. Produzem uma enxurrada de informações, orientações e dados à disposição dos indivíduos –atualmente ao alcance das mãos nos aplicativos dos celulares– para conduzi-los no cuidado de si e do coletivo. Tudo cuidadosamente calculado, planejado e comunicado.

Uma gestão bem-sucedida de uma crise social e sanitária provocada por uma pandemia passa necessariamente pela capacidade de comunicação dos governos, com produção e disseminação de informação voltada para o esclarecimento e orientação do comportamento das pessoas. Requer objetividade e transmissão de informações precisas.

Desde o início da pandemia de Covid, o mundo vem buscando caminhos e alternativas para garantir a normalidade, nem que seja sinalizando com a promessa de um “novo normal”.

No entanto, buscar a normalidade nos impede de pensar em termos de ruptura. Toda crise é potência para a transformação. Porém a ruptura que motiva a busca de novas formas de ação, outros parâmetros, novos paradigmas e utopias também nos mergulha em medo, ansiedade e luto. Paralisa, implorando pelo conhecido. Nos prende na gestão da urgência.

A necessidade de dar garantias de normalidade vem conduzindo discursos políticos, decisões em políticas públicas, debates na mídia e as escolhas de cada um de nós.

Em vários países isso se soma a uma gestão pública antidemocrática pautada pelos princípios neoliberais: a urgência do mercado, o apagamento do social, a austeridade fiscal, a manipulação dos medos individuais e coletivos. Monta-se uma impiedosa armadilha coletiva.

Ao focar na campanha de vacinação e em seus benefícios, e ao mesmo tempo relaxar restrições de circulação, permitindo a reabertura de escolas e shopping centers, o governo incentivou a retomada da rotina, potencializando a circulação do vírus, a proliferação de novas cepas e o contágio.

Como resultado, viu-se uma explosão nas taxas de ocupação de leitos de UTIs, um esgotamento das equipes e profissionais de saúde, e uma transformação no perfil de seus doentes: estão cada vez mais jovens.

Se antes os leitos de UTI eram ocupados por idosos e pessoas dos grupos de risco, o vírus encontrou seu caminho entre os que agora não apresentam resistência imunológica: adultos jovens.

Apesar do avanço da vacinação nos grupos de risco, a letalidade continua a mesma, pois o vírus só migrou e se adaptou a um novo grupo. Adicionalmente, por ser mais jovem, esse grupo é composto por pessoas que passam mais tempo lutando pela vida quando a doença se agrava. Com isso, ocupam os leitos de UTI por um tempo muito maior, mesmo quando evoluindo a óbito.

Em suma, o governo passou o recado errado, e as pessoas ansiosas por normalidade não pensaram duas vezes para incorporá-lo.

A situação do Brasil

Vacina tornou-se palavra de ordem no Brasil. Os esforços e a comunicação dos governos voltaram-se para a vacinação, que ganha ares de passaporte para o normal.

Porém a isso se soma o “abre e fecha” de escolas, comércio, áreas de lazer, bares e restaurantes.

Um dia atividades ao ar livre estão proibidas; na semana seguinte são permitidas apenas individualmente; na outra semana, em grupo. Praias fecham, mas bares e restaurantes abrem ao público.

País afora, o que vemos é um vai e vem de recomendações disparatadas a partir de lógicas locais e fragmentadas, todas voltadas para o esforço de manter a rotina e não desagradar aos interesses econômicos mais poderosos. E sem qualquer coordenação centralizada.

Na mídia discutem-se quantidade de leitos e aberturas de vagas de UTI como se fossem um recurso infinito, independente de orçamento ou de recursos humanos.

Conforme aumenta a curva de casos, o gestor aumenta o número de leitos. A taxa de ocupação de leitos é um dos principais indicadores adotados para a decretação das “fases” que indicam a gravidade da pandemia que cada município atravessa (ocupação de leitos, taxa de casos e mortalidade).

Indicadores que passaram a pautar nosso cotidiano, quando as taxas sobem aumentam as restrições, quando descem se relaxam as restrições.

Pior, esse vai e vem dos dados e das decisões parece nos conferir uma frágil, porém necessária, sensação de previsibilidade e de controle. Afinal, as decisões são tomadas com orientações técnicas embasadas por monitoramento de dados.

E as pessoas entendem o recado: se bares, restaurantes, shoppings, escolas... estão abertos, então posso frequentá-los. Uma míope gestão dos riscos voltada para a normalização e ditada pelas urgências do mercado.

Estamos diante de decisões tomadas a partir de parâmetros “fora do lugar”, orientadas por ideias e valores que não são capazes de dar uma luz à crise que estamos vivendo, estabelecendo uma gestão de políticas públicas que pode bem ser definida pela imagem do cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Enquanto a comunicação sobre os riscos da Covid e as orientações de prevenção e de comportamento para evitar transmissão e contágio não forem claras, e prevalecerem ações voltadas para o retorno a uma “vida normal” que nunca virá, a gestão pública se resumirá à gestão das urgências impostas pela fila da morte nos leitos hospitalares –de escalada imprevisível diante de recursos finitos.

Um dia precisaremos de leitos, no outro de oxigênio, depois de sedativos, e amanhã de um incremento na produção de caixões.

Para além do risco da normalização da escalada da morte, põe-se em jogo a credibilidade da vacinação.

A armadilha está em fazer crer que a vacina é a grande saída para uma crise que requer muito mais do que ações e esforços realizados a partir de uma lógica de urgência.

A vacina é somente parte da solução. Deveria ser acompanhada por medidas de distanciamento, um longo período de isolamento social, utilização de máscaras, testagem em massa e monitoramento dos doentes. Acima de tudo, pela aceitação de que houve uma ruptura definitiva com a vida que vivíamos.

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