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Venezuela: abuso e violência no mundo cultural

Para apoiar as vítimas de abuso e violência de gênero, mais de setenta artistas criaram o movimento Yo Te Creo, Venezuela

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Magdalena López

Cientista política e pesquisadora do Instituto Kellogg de Estudos Internacionais da Universidade de Notre Dame (EUA) e do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa

O suicídio do escritor venezuelano Willy McKey, após ter admitido violar uma menor que o havia denunciado nas redes sociais, suscitou uma discussão que está pendente na Venezuela há muito tempo. O debate sobre a violência de gênero e, particularmente, a recorrência e a impunidade com que vem ocorrendo em vários campos culturais está finalmente em cima da mesa.

Para apoiar as vítimas de abuso e violência de gênero, mais de setenta artistas criaram o movimento “Yo Te Creo, Venezuela” (Eu Acredito em Você, Venezuela), no entanto, a iniciativa ainda encontra muita resistência. Enquanto surgem testemunhos de abusos, principalmente de mulheres jovens, outras reações mostram como será difícil quebrar a naturalização da violência no mundo da cultura. Neste contexto, as redes sociais venezuelanas expõem alguns argumentos recorrentes para rejeitar ou evitar o debate.

Homem segura bandeira da Venezuela durante protesto em Guiria
Homem segura bandeira da Venezuela durante protesto em Guiria - Yuri Cortez/AFP

OS ARGUMENTOS RECORRENTES

“É melhor ficar quieto para não dar armas à ditadura”. Esta máxima assegura que é melhor permanecer em silêncio para não dar ao regime de Nicolás Maduro uma desculpa para prender figuras da oposição. Este raciocínio não é diferente do de certas esquerdas que insistem em silenciar os crimes do socialismo real para não dar armas ao inimigo imperialista.

Os detentores desta máxima não percebem que as relações de poder abusivas são transversais aos campos políticos em disputa. É claro que o regime de Maduro, evitando seus próprios abusos, já aproveitou destes escândalos para perseguir a oposição. Mas dada a falta de um Estado de direito na Venezuela, devemos censurar a justiça seletiva e não defender a impunidade dos crimes.

Por outro lado, boa parte da intelligentsia venezuelana preferiu evitar uma condenação clara das recentes alegações (mesmo quando elas foram confirmadas pelo próprio perpetrador) sob o pretexto de apelar para o “equilíbrio” e a “imparcialidade”. Dessa maneira, ignoram as assimetrias de poder e igualam às vítimas aos perpetradores, enquanto acusam os reclamantes de não oferecerem nuances.

Como revela a artista Erika Ordogoitti em relação ao caso McKey, frases frequentes como “eu não o defendo, mas...” ou “eu condeno o que ele fez, mas...” mostram esta relativização da violência. Outra operação discursiva que tenta homologar vítimas e perpetradores é denunciar o “linchamento midiático” de mulheres indignadas contra McKey. Isso coloca o carro à frente dos bois e ignora o fato de que foi precisamente essa instrumentalização consciente de sua figura midiática que permitiu que McKey abusasse de mulheres jovens.

Minimizar casos como os de McKey como se fossem histórias individuais –Martín Caparrós insinuou que o poeta estava doente–, ou que estavam limitados a laços emocionais, nos exonera como parte de uma sociedade cúmplice que durante anos preferiu olhar para o outro lado. Toleram-se ou incitam esses abusos porque é conveniente, menos traumático, ou simplesmente atraente estar perto dos que estão no topo.

É surpreendente que alguns intelectuais de certa idade (principalmente homens, mas também mulheres) declarem nas redes sociais, a esta altura do século 21, estar “espantados” ou “estupefatos” com os casos de abuso. A dificuldade em nos conceber como uma comunidade, além dos complexos pessoais, parece responder à aguda fragmentação do tecido social venezuelano.

VIOLÊNCIA ESTRUTURAL NA SOCIEDADE VENEZUELANA

Os três argumentos apresentados evadem o problema central. Alguns não mencionam sequer as relações de poder desiguais nas quais a sociedade venezuelana está estruturada, tanto na vida cotidiana como em espaços excepcionais. Eles preferem distrair o foco da discussão sobre possíveis consequências como a impossibilidade de canalizar traumas, o advento de “uma caça às bruxas” ou a instrumentalização do aparelho judicial para perseguir os oponentes, em vez de colocar o dedo na ferida.

A impossibilidade de ver/ver-nos interiormente é precisamente o que garante a impunidade, pois as responsabilidades pertencem apenas ao outro. Fala-se de tragédia no caso McKey, mas parece ser reduzida a uma figura de melodrama. Aquele amigo com quem tiramos uma foto bebendo cervejas, hoje nos deixa desconfortáveis quando lembramos que lhe concedemos um prêmio, o elogiamos em uma revista literária ou porque o achávamos um aluno brilhante.

Poderíamos, no entanto, dar a volta por cima. McKey fez parte de um universo onde há muitos exemplos de músicos que drogam seus fãs para estuprá-las, professores que assediam seus orientandos e se gabam das fotos nuas de seus alunos, psiquiatras que manipulam seus pacientes, ministros que usam fundos públicos para pagar os implantes mamários de suas amantes adolescentes, diplomatas que se gabam de dormir com várias mulheres em viagens oficiais, ou membros de distintas academias que obrigam um colega a ficar calado sobre os espancamentos infligidos por outro membro. Nós sabemos do que estamos falando, não sabemos?

A crítica às relações tóxicas de poder na Venezuela não é um ataque pessoal contra essa ou aquela figura, contra o governo ou a oposição, nem um combate ideológico entre esquerda e direita. Não se trata nem mesmo de uma questão de gênero. O problema é transversal e estamos imersos em dinâmicas de poder profundamente desiguais e abusivas, com múltiplos marcadores. Idade, orientação sexual, classe social, cor da pele, nacionalidade ou origem rural determinam as formas de subordinação.

Infelizmente, esse não é um fenômeno recente. As relações de poder permaneceram praticamente intactas, apesar da Revolução Bolivariana. Por exemplo, basta lembrar os crimes contra Linda Loaiza, que foi sequestrada, estuprada e torturada com a cumplicidade das elites da socialdemocracia e sem qualquer possibilidade de justiça sob o regime chavista.

Quantos de nós já sofreram ou ouviram testemunhos de abusos em diferentes graus por parte de familiares, parceiros, colegas, professores ou chefes? Quanto de tudo isso ousamos dizer publicamente com nomes e sobrenomes, não apenas por causa da justiça, mas pelo menos para proteger outras possíveis vítimas?

À primeira pergunta respondo que muitas, demasiadas. Ao segundo respondo que muito poucos, bem pouco. Talvez tenha chegado o momento em que, de mãos dadas com as gerações mais jovens e com a experiência migratória que nos permitiu deixar a temporalidade petrificada e nostálgica vivida na Venezuela, possamos começar a construir modelos alternativos de convivência.

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