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Dos barcos e do racismo na América Latina

É importante haver um debate sério sobre a racialização na Argentina e em outros países latino-americanos

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Emmanuel Guerisoli

Advogado, especialista em teoria racial crítica e processos de formação de Estados, e mestre em estudos internacionais e sociologia

Federico Finchelstein

Professor de história na New School, em Nova York, e doutor pela Universidade Cornell. É autor de obras sobre fascismo, populismo, o Holocausto e ditaduras

Em 9 de junho, em uma conferência entre o presidente da Espanha, Pedro Sánchez, e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, este último afirmou que “os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, argentinos, chegamos de barcos, e eram barcos que vieram da Europa”.

A frase esconde a fantasia de que a população argentina, ao contrário de outras populações latino-americanas, é exclusivamente um produto da migração europeia, o que supostamente lhe confere um vínculo cultural único com o velho continente.

Essas palavras provocaram um escândalo a nível continental.

E, embora o presidente argentino tenha se desculpado rapidamente, sua declaração sugere um suposto racismo e uma ignorância incômoda.

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, durante entrevista em Madri
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, durante entrevista em Madri - Gabriel Bouys - 11.mai.2021/Reuters

O mais grave, porém, é que as palavras refletem o sentimento em vários países da América Latina, não apenas na Argentina, que é gerado, reproduzido, reforçado e legitimado a partir dos processos históricos.

Dito isso, a declaração de Fernández, que não é nativista nem fascista, deveria se diferenciar de outras realizadas por Jair Bolsonaro ou Donald Trump, já que nesses casos os comentários são enquadrados dentro das ideologias populistas pós-fascistas.

Para a maioria dos argentinos, a racialização e as práticas coloniais são estranhas à sua história e não têm lugar na sociedade atual.

Mas, ao mesmo tempo, eles acreditam que sua ascendência europeia é única na América Latina, e que isso os torna superiores.

Para as elites políticas, intelectuais e culturais da Argentina, o arquétipo argentino é branco e seus ancestrais podem ser rastreados até os barcos transatlânticos que partiram de Gênova ou Barcelona na década de 1890.

Fernández não foi o primeiro presidente da Argentina a fazer declaração similar.

Em 2018, Mauricio Macri disse que “na América do Sul somos todos descendentes de europeus”; em 2015, Cristina Fernández de Kirchner disse que os argentinos “são filhos, netos e bisnetos de imigrantes”; e em 1996 Carlos Menem disse que na Argentina não havia negros e que esse era um “problema” brasileiro.

De acordo com esse mito, os argentinos sempre foram brancos, portanto, ao contrário do México, na Argentina a mestiçagem nunca foi exaltada.

Isso, entretanto, também não livra o México da culpa, pois é preciso lembrar que a criação do que José Vasconcelos definiu como a “raça cósmica” de sangue mestiço europeu e nativo se baseou na exclusão de linhagens puramente indígenas e negras.

Nessa linha, o imaginário nacional argentino foi construído em torno dos imigrantes europeus como agentes modernizadores da nação, apagando com uma assinatura a existência, contribuições e identidades de afro-argentinos, mestiços, comunidades indígenas e imigrantes de China, Coréia do Sul, Síria, Líbano, Armênia, Angola, Guiné e países da América Latina.

Na verdade, há uma crença generalizada de que os mestiços e negros são, na realidade, migrantes de primeira ou segunda geração do Brasil, Peru, Paraguai, Uruguai e Bolívia.

Essa narrativa francamente racista consolidou e naturalizou ainda mais uma suposta brancura argentina na qual os verdadeiros argentinos, cujos pais e avós saíam dos barcos, eram parte da classe média educada e moderna.

Enquanto aqueles, produto da miscigenação com os povos indígenas ou os filhos de imigrantes que “acabaram de chegar” dos países vizinhos, eram membros da classe trabalhadora, rural, ignorante e atrasada.

Esse discurso teve origem durante as políticas de “europeização” dos fundadores modernos como Domingo F. Sarmiento, Bartoleme Mitre e Julio A. Roca em meados e finais do século 19, que consistiram na progressiva erradicação das populações indígenas da Patagônia e do Chaco argentino, e na promoção da imigração europeia a fim de substituir os nativos por colonos brancos.

Para esses políticos e pensadores, uma nação moderna exigia “gente civilizada” e não “selvagens”.

A predileção pelos imigrantes da Europa se constitucionalizou em 1853 e permanece até os dias de hoje.

Deve-se dizer, entretanto, que a Argentina foi o único país das Américas que nunca instituiu uma proibição ou quota étnica ou racial específica de imigração. Todos os outros proibiram em determinados momentos a entrada de chineses ou limitaram a recepção de judeus.

Nesse sentido, a Argentina desenvolveu uma das políticas de imigração mais progressistas do mundo, ao contrário dos Estados Unidos, que tinham múltiplas proibições e cotas de exclusão racial legitimadas eugenicamente até 1965, sendo copiados por países como Canadá, Cuba, Austrália, Equador e Chile.

Isso não quer dizer que não tenha havido tentativas similares ao longo da história argentina.

Santiago Peralta, que estudou antropologia na Alemanha nos anos 1930 e foi o chefe do Instituto Nacional de Imigração e diretor do Instituto Nacional Étnico, que foi modelado com base no Escritório Nazista de Iluminação em Políticas Populacionais e de Bem-Estar Racial durante a primeira administração de Juan Domingo Perón, bloqueou administrativamente e secretamente parte da imigração judaica e desenvolveu uma série de políticas de inspiração eugênica para limitar a entrada dos chamados indesejáveis.

O Instituto Nacional Étnico considerou que o “tipo étnico nacional” era o “tipo racial mediterrâneo da raça branca” e promoveu uma série de políticas de hibridização dirigidas ao branqueamento racial das comunidades indígenas mediante a aplicação de miscigenação, remoção de crianças e vigilância eugênica programada.

Foi desenvolvida uma taxonomia de grupos indígenas, classificando-os de acordo com níveis de indigeneidade estrangeira ou não autóctone.

O instituto concluiu que a original e única comunidade indígena na Argentina eram os Tehuelches, que foram extinguidos por aniquilação por parte de “tribos estrangeiras”, como os mapuches (do Chile) ou os guaranis (do Paraguai), ou por miscigenação definida por eles como araucanização.

Supostamente, não existiam mais povos indígenas na Argentina. Se sobrou algum, eles haviam se misturado com colonos brancos ou hibridizados com nativos não argentinos.

É essa ideia de tribos estrangeiras que legitimou o assassinato em massa de entre 2.000 e 3.000 pessoas em Ricon Bomba, na província de Formosa, no nordeste do país, por ordem de Perón em 1947.

Segundo as Forças Armadas, as plantações de cana-de-açúcar haviam sido ocupadas por comunidades indígenas do Paraguai, apesar de serem trabalhadores rurais que protestavam pelos direitos trabalhistas básicos.

Mas esse evento, e muitos outros, foram apagados da memória e só agora estão sendo revisitados, depois que um juiz argentino apontou crime contra a humanidade.

A remitificação da Argentina como um país exclusivamente branco e o apagamento das comunidades indígenas, mestiças, negras e não europeias por parte de Fernández mostra como é importante ter um debate sério sobre a racialização na Argentina e também em outros países latino-americanos.

Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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