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Auxílio Brasil: uma corrida de obstáculos

Quantas famílias conseguirão atender às condicionalidades para manter uma renda próxima da garantida pelo Bolsa Família?

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Camila De Mario

Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de sociologia política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Universidade Cândido Mendes

Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro editou a medida provisória nº 1.061, que institui o Programa Auxílio Brasil, em substituição ao Programa Bolsa Família, atualmente em tramitação no Congresso Nacional.

Medidas provisórias têm força de lei, portanto efeito de aplicação imediata. As MPs têm prazo de vigência de 60 dias, e o Congresso tem um prazo de 45 dias para apreciação e aprovação.

É fundamental que a sociedade brasileira esteja atenta a essa discussão e consciente das mudanças que serão ensejadas por sua eventual aprovação, seja em sua totalidade ou com alterações.

Fim do Bolsa Família

O Bolsa Família é o mais importante programa de distribuição de renda brasileiro, com resultados notórios, pois retirou milhões de famílias da situação de pobreza e de extrema pobreza.

O Brasil está passando pela sua mais importante crise política, econômica e social. Somam-se desemprego, endividamento, insegurança alimentar, estagnação econômica e aprofundamento das desigualdades,aos desafios impostos pela pandemia de Covid-19.

É nesse cenário que o atual governo propõe sem qualquer discussão ou consulta à sociedade civil o fim do Bolsa Família, impondo por meio de uma MP um programa que mais parece uma corrida de obstáculos.

As mudanças são muitas e terão impacto profundo.

A falta de definição de valores chama a atenção na leitura da MP. Não sabemos qual é a faixa de renda que define pobreza e extrema pobreza, não sabemos o valor de nenhum dos auxílios propostos, e é difícil saber o que acontecerá com as famílias que já fazem parte do Bolsa Família.

A primeira importante mudança está na forma como é feito o cálculo de extrema pobreza.

No Bolsa Família, a extrema pobreza se definia por uma renda per capita de até R$ 89 mensais. Famílias nessas condições tinham direito a um auxílio básico no valor de R$ 89, mais os auxílios variáveis pagos de acordo com o número de pessoas pertencentes à unidade familiar que se enquadrasse nos critérios.

O Auxílio Brasil

No Auxílio Brasil, o cálculo é outro.

A MP instituiu vários tipos de auxílio, com diferentes condicionalidades, que se somam quando as famílias atendem aos critérios. Os principais são: Benefício Primeira Infância, Benefício Composição Familiar e Benefício de Superação à Extrema Pobreza.

Este último merece nossa atenção. De acordo com a MP, o auxílio será concedido a famílias cuja renda per capita, calculada após o acréscimo dos Benefícios Primeira Infância e Composição Familiar, for igual ou inferior à linha da extrema pobreza –linha essa que não é definida.

Há uma inversão importante aqui, que poderá retirar de muitas famílias que estejam no limiar entre a extrema pobreza e a pobreza o direito a uma parcela importante do benefício, diminuindo, portanto, o valor que receberão.

Não por acaso está previsto um Benefício Compensatório de Transição, que será “gradativamente” reduzido, a ser pago para famílias beneficiárias do Bolsa Família que possam vir a ter seus benefícios reduzidos pelas novas regras.

O Auxílio Brasil é composto também de outros cinco benefícios com condicionalidades, cujas dificuldades impostas aos beneficiários estão para além da exigência de frequência escolar e da obrigatoriedade de acompanhamento da saúde das crianças pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Dentre eles, temos o Auxílio Esporte Escolar, destinado a adolescentes de 12 a 17 anos que se destacarem em competições oficiais dos jogos escolares brasileiros, e a Bolsa de Iniciação Científica Júnior, aos que se destacarem em competições científicas nacionais vinculadas à educação básica.

Ambos são auxílios que atribuem aos adolescentes responsabilidade sobre a renda familiar, em vez de focar em lhes garantir um direito básico fundamental: educação.

O outro auxílio, intitulado Auxílio Criança Cidadã, corporifica uma velha proposta da direita neoliberal brasileira: o voucher creche.

Será concedido preferencialmente para famílias com configuração monoparental, cujos responsáveis comprovem renda e a inexistência de vaga em creche pública ou privada conveniada. O auxílio será destinado ao custeio parcial ou integral das mensalidades das creches conveniadas ao programa.

Claro que a concessão do auxílio não desobriga legalmente o Estado de oferecer vagas em creches, mas certamente permite protelar o problema e evita pelo menos a médio prazo a construção de novas unidades de ensino infantil e a contratação de professores e profissionais da educação, custos que a lógica definidora da atual conformação do orçamento público não admite.

A longo prazo, cria uma cultura política que desobriga o Estado e transfere perversamente a responsabilidade para a família. Educação infantil transformada em benesse.

Outros dois auxílios, o Inclusão Produtiva Rural e o Inclusão Produtiva Urbana, apresentam-se como um incentivo à produção e à inclusão no mercado de trabalho formal.

O primeiro é destinado a agricultores familiares que deverão, como contrapartida, doar parte de sua produção, “correspondente a parte do valor anual recebido”, para famílias em situação de vulnerabilidade social.

Como nos demais auxílios, não fica claro qual seria o montante dessa contrapartida, assim como não está claro o critério de vulnerabilidade social: não estariam as famílias beneficiárias do Auxílio Brasil em situação de vulnerabilidade social?

O Inclusão Produtiva Urbana será concedido para os beneficiários que comprovarem vínculo de emprego formal. A MP não define o que seria vínculo de emprego formal. Supomos que se trata de trabalho com carteira assinada, e questionamos se atividades remuneradas de profissionais autônomos e empreendedores também serão contempladas.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, recebe de Jair Bolsonaro a medida provisória que cria o Auxílio Brasil
O presidente da Câmara, Arthur Lira (à dir.), recebe de Jair Bolsonaro a medida provisória que cria o Auxílio Brasil - Marcos Corrêa - 9.ago.2021/PR

Falta de clareza e retrocesso na política de redistribuição de renda

Não está claro como será feita a inserção dos beneficiários no mercado de trabalho. O benefício trata o desemprego como uma questão de vontade, como se bastasse querer e esforço para inserir-se no mercado de trabalho formal.

O programa também objetiva o incentivo ao microcrédito. Seus beneficiários poderão fazer empréstimos consignados com desconto, de até 30% do valor de seu benefício, realizado pela União em favor das instituições financeiras que ofereçam o microcrédito.

Sabemos apenas que a operacionalização e a definição das regras e prazos será responsabilidade do Ministério da Cidadania. Trata-se de iniciativa temerária e de duas faces: se promove crédito às famílias de baixa renda, também abre para as instituições financeiras uma oportunidade de lucro com uma parcela da população até então excluída do mercado.

Quantas famílias conseguirão se enquadrar e atender a todas as condicionalidades para manter uma renda próxima da que era garantida pelo Bolsa Família?

No Auxílio Brasil é preciso ser muito mais do que cidadão, é preciso merecer, provar que está disposto a se “emancipar” e a superar todos os obstáculos impostos por um programa de renda que aceita e reproduz a desigualdade estrutural que define as oportunidades de vida dos brasileiros.

Baseia-se no princípio da competição neoliberal, no mérito individual e responsabiliza adolescentes pela manutenção da renda familiar. Nada mais distante dos princípios da Renda Cidadã que originaram o Bolsa Família.

Um desmonte, retrocesso que se não for freado pode não ter retorno.

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