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Pedro Castillo e o dilema da moderação

Há que se tentar aproveitar a rara oportunidade de um governo claramente de esquerda no Peru

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Fabricio Pereira da Silva

Professor de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), tem pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago (Chile)

No dia em que foi celebrado o bicentenário da independência do Peru, 28 de julho de 2021, Pedro Castillo (Peru Livre) assumiu a Presidência para um mandato de cinco anos (2021-2026).

A posse simbolizaria a retardatária participação do país no que ficou conhecido como “maré rosa”: a onda de governos de esquerda que varreu a América Latina na primeira década do século XXI e parte da segunda.

Argumento que aquele ciclo se esgotou, que estamos em outro momento na região.

De fato, esgotado ou não o ciclo regional, Castillo se depara com dilemas nacionais: alguns de longo prazo, outros mais imediatos.

Os de longo prazo se relacionam com a pobreza e informalidade de sua economia e com a secular divisão entre Costa e Serra. Os mais imediatos consistem em sobreviver até o final do mandato –algo improvável.

O presidente do Peru, Pedro Castillo, em parada militar em Lima, em comemoração do Dia da Independência do país
O presidente do Peru, Pedro Castillo, em parada militar em Lima, em comemoração do Dia da Independência do país - Alberto Orbegoso - 30.jul.2021/Presidência do Peru

Subidas e descidas de maré

A “maré rosa” é um ciclo esgotado. Ela se deu em outro contexto, como reação ao ciclo de políticas neoliberais dos anos 1990.

Foi beneficiada pela subida dos preços internacionais das commodities (base das economias latino-americanas) e por certa desatenção do governo norte-americano em relação à região, focado que estava na chamada “guerra ao terror”.

Caracterizou-se por estratégias de política externa independente, aumento dos investimentos sociais, experimentos de democracia participativa e direta.

A maré começou a baixar no começo dos anos 2010, e o que a sucedeu foi um quadro matizado.

Houve a ascensão de governos de direita, alguns deles por via eleitoral, outros mediante golpes de Estado institucionais.

Alguns vêm cumprindo uma agenda neoliberal dentro dos limites mínimos da democracia procedimental, como o Uruguai. Outros vão assumindo posições mais autoritárias, casos da Colômbia e de El Salvador, chegando a flertar com o fascismo no Brasil.

Por outro lado, há os sobreviventes da “maré rosa”. Alguns procuram reproduzir as políticas do começo do século em versões rebaixadas, como Argentina e Bolívia (e o México, que não entrou na primeira maré). Outros fecham seus regimes para sobreviver, casos de Venezuela e Nicarágua.

Não se pode considerar que há uma onda avassaladora de direitas, tampouco um segundo ciclo de esquerda. Há sim uma região em disputa, na qual o Peru é uma peça importante do tabuleiro.

A depender do que ocorrerá até o ano que vem no Chile, na Colômbia e no Brasil, pode-se configurar mais claramente um novo “ciclo de esquerdas” –que forçosamente será distinto do anterior.

Mas Castillo não pode esperar: terá que se preocupar com questões locais, algumas bem imediatas.

Moderar para sobreviver?

O principal dilema será o da moderação.

A “boa” ciência política convida os agentes políticos a caminharem para o centro em busca de votos e governabilidade.

Essa tese pode estar associada ao conservadorismo da maioria dos cientistas políticos e vem sendo praticamente contestada por quase todas as polarizadas disputas políticas contemporâneas.

No Peru atual, seria a senha para Castillo não realizar nada –e ser derrubado ao final, de todo modo.

A posse de Castillo simboliza sua vitória temporária em uma disputa de narrativas que durou semanas em torno de pretensas fraudes eleitorais nunca comprovadas. Porém de modo algum assegura governabilidade ao novo presidente.

O país atravessa uma grave crise política, econômica, social –que simbolicamente não se resolve com esta posse e os apelos de união em torno do Bicentenário.

O fujimorismo é um fator contumaz de desestabilização, constituindo-se na verdadeira ameaça à democracia peruana.

Para além disso, nada ajuda conviver com uma Constituição produzida num período autoritário, em consequência de um autogolpe de Estado.

Assim como no Chile, se justifica considerar a carta peruana carente de legitimidade, para dizer o mínimo.

Ademais, a Constituição é fiadora de um sistema político que não se sabe bem se é semipresidencialista ou semiparlamentarista e que gera sucessivas crises entre presidentes fracos e partidos políticos minoritários e sem representatividade.

Não gera equilíbrio e estabilidade, mas uma crise sem fim e o bloqueio de qualquer transformação.

Surpreende que qualquer analista peruano que se proclame democrático seja tomado por temores em relação à proposta de uma Assembleia Constituinte. E não surpreende em nada que a convocação da Assembleia esteja no centro do programa de Castillo e do Peru Livre.

Dois cenários possíveis

Diante disso, a Assembleia Constituinte se constitui num símbolo que vai indicar se Castillo optou pela moderação ou por cumprir seu programa.

É por isso que, tendo feito movimentos ao centro no segundo turno e na montagem de seu gabinete, ele não abre mão dessa bandeira.

Assim, abrem-se dois cenários possíveis. Os dois são difíceis e não garantem o cumprimento do mandato.

O primeiro é renunciar a todos os anéis para não perder os dedos.

Nesse cenário, ao final teríamos um governo desmoralizado e sem qualquer chance de eleger um sucessor. Como Ollanta Humala, seria mais um mandatário a renunciar a um programa de mudanças.

A propósito, nem isso garantiria o cumprimento dos cinco anos de mandato. Outros presidentes peruanos têm sido derrubados por muito menos.

O segundo caminho é o de tentar cumprir o máximo que for possível do programa, forçar dentro das possibilidades, ou tentar ampliar os limites das possibilidades.

Trata-se de um caminho evidentemente sobre o fio da navalha, que igualmente não garante a sobrevivência do governo por cinco anos.

Esse caminho evidentemente exigiria maior mobilização popular e árduas negociações.

Percebe-se que nos dois cenários não há garantia de estabilidade. Mas no segundo cenário ao menos haveria uma chance de conclusão da crise orgânica vivenciada pelo país, dada a possibilidade (ainda que improvável) desse caminho concluir em uma refundação do país.

Em meio a esse dilema de difícil resolução, o novo governo deve ainda reorganizar o problemático enfrentamento da pandemia.

Deve também atacar a pobreza e a informalidade crescentes. Essas foram aprofundadas pela pandemia, mas são heranças de décadas de neoliberalismo e da história de larga duração do país.

Com isso chegamos ao tema da secular divisão entre Costa e Serra, atravessada pela questão indígena.

Castillo se elegeu em boa parte com base nessa divisão. O fez inclusive deslocando a esquerda “cosmopolita” e “progressista” limenha, que precisará lidar com o eterno retorno de temas que gostaria de contornar: uma nacionalidade que nunca se completa, a questão indígena, as divisões regionais, a religiosidade do povo pobre.

Dado todo o contexto, os espaços são estreitos. Mas há que se tentar aproveitar a rara oportunidade de um governo claramente de esquerda no Peru –novidade numa larga trajetória conservadora.

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