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O risco de uma desintegração do Mercosul

É necessário esforço, principalmente da Argentina e do Brasil, ara resgatar e reativar o sentido estratégico deste acordo

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Bernabé Malacalza

É professor da Universidade Nacional de Quilmes e da Universidade Torcuato Di Tella, na Argentina. É PhD em ciências sociais, pesquisador em questões estratégicas no Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (CONICET).

Juan Gabriel Tokatlian

Sociólogo e professor titular de relações internacionais na Universidade Torcuato Di Tella (Argentina). Doutorado em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins (EUA).

Desintegrar, segundo a Real Academia da Língua Espanhola, admite várias acepções. Uma delas significa destruir por completo; outra, perder coesão e força. A noção de desintegração remete então a uma perda e/ou a uma destruição. Aqui assumimos que a desintegração não é apenas a antítese da integração, mas reflete o declínio de um modo de conceber e aplicar políticas comuns em uma ampla gama de assuntos entre Estados vinculados a uma comunidade política. Neste sentido, existe o perigo de que o Mercosul possa, eventualmente, se desintegrar, e a responsabilidade maior será da Argentina e do Brasil.

Desde o começo dos processos de democratização nos anos 1980 e antes do fim da Guerra Fria, ambos assumiram o mérito de uma parceria estratégica. Hoje, o grande produto sub-regional deste compromisso bilateral, o Mercosul, está perdendo gravitas e é fonte de uma crescente divergência intragrupo. Ano a ano aumentam, segundo a conjuntura nacional em cada país, os merco-céticos, merco-obstaculizadores e merco-impugnadores. Simultaneamente tem se calado as vozes dos merco-entusiastas, merco-pragmáticos e merco-comprometidos.

Por que, apesar dos esforços para criar organizações internacionais e dos benefícios que elas geram, os Estados as abandonam ou as destroem? A internacionalista Mette Eilstrup-Sangiovanni realizou um estudo baseado no desempenho de 561 organizações intergovernamentais criadas entre 1815 e 2006 e chegou a uma conclusão surpreendente: o índice de mortalidade tem sido relativamente alto, já que aproximadamente dois quintos deixaram de existir.

Bolsonaro durante Cúpula de chefes de Estado do Mercosul - Alan Santos-8.jul.21/PR

O que leva ao falecimento das organizações intergovernamentais? Existem duas teses. Por um lado, argumenta-se que as mortes são causadas por mudanças nos equilíbrios de poder internacional e/ou por choques políticos e econômicos externos que reduzem a utilidade dos Estados, como foi o caso da Saarc (Associação de Cooperação Regional do Sul da Ásia) fundada em 1985. Por outro lado, argumenta-se que essas organizações são propensas a cessar devido a causas endógenas relacionadas com a fragilidade de sua institucionalidade, a redução dos vínculos transnacionais entre os membros e as divisões ideológicas, como no caso da Comunidade Andina de Nações (CAN), criada em 1969 sob o nome de Pacto Andino e em estado vegetativo desde 2006.

A atual crise do Marcosul é, em parte, diferente e mais complexa. De maneira paulatina, se observa uma confluência de fatores exógenos e endógenos que atuam como causas inibidoras –-e eventualmente destrutivas-- do processo integrador. A encruzilhada que o Mercosul enfrenta hoje se assemelha a uma combinação do que aconteceu com a Saarc e a CAN.

Segundo o internacionalista Stephen Walt, o fracasso ou colapso dessas sociedades se deve a aspectos estratégicos, de poder material e simbólico, políticos e socioeconômicos. A Saarc não tem sido capaz de organizar uma cúpula desde 2014. A última foi a do Paquistão, mas com o aumento das tensões após os ataques terroristas em Mumbai em 2016, a Índia boicotou as tentativas de realizar tal conclave. Estão há sete anos sem reuniões e, nesse período, o Paquistão consolidou uma relação muito estreita com a China, enquanto a Índia fortaleceu sua aproximação com os Estados Unidos.

Algo semelhante poderia acontecer se, por exemplo, no cenário de uma disputa acirrada entre os Estados Unidos e a China, a Argentina e/ou o Brasil decidissem se curvar a uma ou outra das potências. Assim, as respectivas aquiescências enterrariam o espírito de convergência estratégica da Declaração de Foz de Iguaçu de 1985 que selou a amizade entre a Argentina e o Brasil.

O Mercosul atravessa, ademais, o período de menor densidade de vínculos transnacionais econômicos-comerciais de sua história. Este declínio no intercâmbio intrazona começou a se consolidar a partir de 2011, e foi se acentuando, de maneira abrupta, a partir do avanço da demanda de produtos primários da China que, ao mesmo tempo, contribuiu para a aceleração de um processo de primarização do bloco.

Diante disso, os países do Mercosul não geraram novas condições para um redesdobramento produtivo baseado em cadeias de valor agroindustriais ou projetos conjuntos de diversificação produtiva. Pelo contrário, a dinâmica unilateral e as crenças dogmáticas aumentaram lentamente, desencorajando os laços produtivos.

ESTAMOS ÀS PORTAS DA DESINTEGRAÇÃO?

Uma primeira lição é que as organizações internacionais podem sucumbir ao estresse ambiental de um choque externo se não gerarem anticorpos suficientes e seus membros se inclinarem a responder afirmativamente aos pedidos de aquiescência de grandes potências, como no caso mencionado da Saarc. Uma segunda lição é o risco representado pela menor densidade de vínculos transnacionais, as insuficiências da infraestrutura física, a escassa disposição ou capacidade inovadora e de inserção nas cadeias regionais de valor das empresas e a fragilidade social derivada da escassa participação cidadã em projetos conjuntos.

É possível, como sustenta o internacionalista Andrew Moravcsik com respeito à União Europeia, que mesmo um colapso do euro não ponha em risco a integração. Entretanto, as repercussões de tal evento sem dúvida dariam um enorme impulso aos movimentos antieuropeus. Finalmente, uma terceira lição a ser destacada é que as vacilações políticas que cada governo atribui à integração podem corroer a coesão e, com isso, assentar o terreno para uma desintegração.

Segundo o sociólogo e politólogo Karl Deutsch, um sistema é integrado se, em virtude da coesão entre seus membros, puder lidar com tensões e pressões, suportar desequilíbrios e resistir a divisões. Um exemplo é o fracasso da Liga das Nações, que teve um apogeu promissor entre 1924-1929. Por razões particulares de cada país, os governos e a opinião pública dos países ocidentais hesitaram em dar-lhe relevância durante o período de 1934-1938. O Presidente Franklin D. Roosevelt, em um famoso discurso em 1937, pediu a “quarentena dos impugnadores”, mas nem as elites nem as sociedades o apoiaram.

Existe consciência nos países membros —especialmente na Argentina e no Brasil— do que poderia significar o fim do Mercosul?

Já não se trata de se adaptar às circunstâncias para permitir a sobrevivência do Mercosul, mas da necessidade de um esforço, principalmente da Argentina e do Brasil, para resgatar e reativar o sentido estratégico deste acordo que completa seus 30 anos de existência. Neste contexto, é urgente, como complemento natural ao que fazem os governos no poder, estimular e desenvolver a diplomacia cidadã para que ela possa assumir um papel complementar ao do Estado.

Em resumo, é indispensável um amplo envolvimento dos cidadãos —políticos, empresários, trabalhadores, ONGs, sindicalistas, acadêmicos, cientistas, comunicadores, artistas, mulheres, jovens, etc— numa efetiva recuperação do ideal integracionista argentino-brasileiro e num franco relançamento do Mercosul.

*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima

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