Em meio à pandemia de coronavírus, Jair Bolsonaro, assim como Donald Trump, procurou se beneficiar politicamente, negando a ciência e promovendo o avanço da doença.
Mas, na Áustria, os antivacina foram mais longe. No país alpino, os céticos da Covid já têm seu partido e recentemente conquistaram assentos no parlamento regional, em um feito inédito que faz parte de um fenômeno mais amplo, a politização extremista da doença.
Como com Bolsonaro no Brasil, mas de uma forma ainda mais singular, o foco central desse novo partido é a oposição à campanha de vacinação do governo austríaco e a rejeição de novas restrições que exigem prova de inoculação para entrar em restaurantes e outros espaços fechados.
Globalmente, o movimento antivacina é composto por um grupo muito eclético de pessoas atraídas pelo medo.
De pais que se veem como progressistas e consideram que junto a seus filhos vivem vidas saudáveis e não adoecerão e, portanto, não precisam incorporar elementos estrangeiros em seus corpos que podem causar efeitos negativos, até grupos de extrema direita cuja paranoia os leva a fantasiar sobre conspirações de governos, magnatas e a indústria farmacêutica, que supostamente estão escondendo a verdade.
Diante desses medos, os antivacina preferem a doença ou o risco potencial à doença.
O primeiro partido antivacina
O partido austríaco antivacina adotou como nome uma trindade, “Povo, Liberdade, Direitos”.
No momento é um partido minoritário, e as liberdades e direitos que reivindica são os mesmos que os dos antivacina a nível global, que são a liberdade e o direito de se contagiar e, portanto, nos infectar.
Como assinala o Financial Times, esse efeito menor pode ter repercussões maiores no futuro.
A Áustria é também o país que primeiro nos deu Adolf Hitler, e depois, no final do século passado, Jörg Haider, um dos primeiros populistas de extrema direita a chegar ao poder em um governo de coalizão, no ano 2000.
Naqueles anos, quando a proximidade com o fascismo era algo tóxico, a Áustria foi muito criticada na Comunidade Europeia e se converteu em um tipo de um pária internacional.
Hoje, o contexto é muito diferente.
Líderes como Donald Trump e seu discípulo Jair Bolsonaro são claramente pró-Covid, no sentido de que suas políticas e mentiras beneficiaram a propagação da pandemia, primeiro em seus países e depois globalmente.
Enquanto Bolsonaro é claramente antivacina, Trump é ambivalente e tende a apoiar a profunda rejeição de vacinas por parte de seus eleitores. Uma de suas fantasias associa a vacina tríplice viral –que protege contra sarampo, caxumba e rubéola– ao diagnóstico de autismo em crianças.
Esse medo infundado das vacinas foi difundido com êxito por meio de suas mensagens no Twitter, o que não o impediu de receber sua vacina anti-Covid quando deixou a Casa Branca.
Tanto Bolsonaro como Trump fazem política com a Covid, mas também têm outras prioridades antidemocráticas em sua agenda, como negar resultados eleitorais, fomentar a xenofobia, militarizar a política, reprimir e vitimizar minorias, imigrantes e jornalistas, planejar autogolpes passados e futuros, e sobretudo tentar ficar fora da prisão pelas suspeitas de ilícitos e corrupção que os assombram.
A candidata pós-fascista à Presidência da França, Marine Le Pen, e seu partido apresentaram “o livro negro do coronavírus”, dedicado a todas as vítimas do vírus. O paradoxo é que, enquanto denunciam as “mentiras” e as medidas de saúde do governo francês, eles apresentam a liberdade como o direito de ignorar a ciência sobre a doença.
Nesse sentido, todos eles estão à direita de Haider e mais próximos de Hitler. Para os fascistas, as palavras estão a serviço de mentiras simples e absolutas, que na realidade são mentiras maiores.
A grande mentira sobre a Covid, assim como a grande mentira sobre a eleição e o golpe fracassado, definem a história do trumpismo da mesma forma que as mentiras antissemitas definiram o nazismo. Mas é necessário lembrar que os nazistas usavam a doença como metáfora, e às vezes também como uma realidade contra seus inimigos.
Em seu livro "Minha Luta", Hitler afirmou que aqueles que queriam a liberdade do “sangue alemão” precisavam “libertá-lo” do “vírus estrangeiro”, representado pelo “problema judeu”.
Como aponta Branko Marcetic em um texto publicado na revista Jacobin, ao contrário dos supostos precedentes fascistas dos mandatos para a vacinação dos antivacina e a extrema direita da Europa, Estados Unidos e América Latina, os nazistas realmente relaxaram a vacinação para os alemães e a restringiram totalmente para pessoas consideradas inferiores.
Os nazistas deixaram de vacinar com o propósito de fomentar a doença e a morte entre os outros, não a sua própria.
Nisso seus herdeiros diferem, promovendo entre seus seguidores a desinformação sobre a vacinação e as mentiras sobre as medidas sanitárias e formas de contágio, o que levou a uma maior incidência de morte entre seus próprios seguidores.
Hitler definiu que sua política buscava construir os primeiros degraus para que sua nação “ascendesse ao templo da liberdade”, a mesma “liberdade” que se refere o partido pró-Covid da Áustria, cujo lema é “não acredite em tudo o que te dizem”.
De todas as lições que a pandemia deixou, as metáforas da doença e a ignorância da ciência são as mais preocupantes.
E aqueles que falam da liberdade como uma licença para infectar o resto da sociedade são, na realidade, seus maiores inimigos.
Texto publicado originalmente no Clarín (Argentina)
Tradução de Maria Isabel Santos Lima
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