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O Brasil emergente

Nem alienado nem intelectualizado, país sabe o que não quer: uma repetição de tragédias

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Carlos A. Gadea

Cientista político, professor do programa de pós-graduação em ciências sociais da Unisinos e doutor em sociologia política pela UFSC.

Há um Brasil que está se extinguindo à medida que surge um novo, mas esta transição não pode ser percebida simplesmente observando a esfera política. Desde a transição democrática, estivemos acostumados a detectar nos altos e baixos da vida política e institucional as energias sociais e culturais subjacentes, as ideias que estavam em disputa, os valores e a ética que estavam sendo postos à prova nos novos tempos dos anos 1980 e 1990. A vida cultural e social se incorporava como um acessório para a compreensão da esfera política, definindo escolhas como ouvir Caetano Veloso ou Chico Buarque. Nada escapava à política; nem mesmo a escolha da pasta de dentes.

No entanto, a esfera da política não está necessariamente em correspondência com os aspectos sociais e a vida cultural de um país. Paradoxalmente, esta pode chegar a desvincular-se daquilo que se acredita e transformar-se na vida cotidiana das pessoas, nos seus gostos, valores e interesses, nas formas como enfrentam os seus desafios, de consumir, de amar e de ser reconhecido por aqueles que lhes são próximos e por outros.

O mundo do trabalho, a religiosidade e a estética desenvolveram mudanças significativas nos últimos 30 anos, enquanto a esfera política parece ainda se reproduzir em disputas ideológicas entre esquerda e direita que não cobrem grande parte da esfera social. Os últimos 20 anos de progressivismo político em torno de governos de centro-esquerda, materializados num ciclo de ambiguidades sociais e econômicas, levaram a um aparente beco sem saída onde a esfera política gagueja por falta de ar.

Montagem Jair Bolsonaro e Lula
Bolsonaro e Lula, pré-candidatos à eleição presidencial em outubro de 2022 - Pedro Ladeira/Folhapress/ Lula no Facebook

Parece que o seu oxigênio se esgotou e o que mantinha a sua energia eventualmente criativa acabou na antítese da política, na sua negação como um jogo de disputa dos livres interesses dos cidadãos numa sociedade democrática. Materializada em batalhas identitárias e de "linguagens apropriadas", de políticas de "auxílios econômicos" para os mais pobres e de acusações pessoais, a negatividade da política domina pela superficialidade e falta de criatividade e debate sobre projetos e ideias políticas. O a priori de cada argumento é o fim da política como um exercício, e da esfera da política como um lugar de criação e transformação da vida das pessoas.

O Brasil que está gradualmente deixando de existir é aquele em que se acreditava que as pessoas viviam em torno de contínuas demandas, conflitos e a compreensão de que em cada vínculo social há sempre, a todo o momento, uma lógica de poder em jogo. Está sendo deixada de lado aquela sociedade que tinha se tornado tão tensa devido à proliferação de situações em que se acreditava que já não haveria espaço para noções como diálogo, consenso, "mulato", transição, mistura, hibridização ou encontro.

O Brasil da imposição de perspectivas, onde se determinava –como se fosse pré-determinado– aquilo que poderia ser dito, desaparece. Há um certo desgaste com o Brasil polarizado, onde tudo é discutido e onde são tomadas posições sobre tudo como se isso implicasse o exercício da cidadania. Cansaço para o populismo hard.

Enquanto este Brasil dilui-se, uma grande parte da população assiste à emergência de valores, gostos e estilos de vida que influenciam o mundo do trabalho e a autopercepção das pessoas. A música, a estética, a própria esfera da cultura, indicam como este Brasil emergente está associado aos chamados "batalhadores" brasileiros, milhões de pessoas que têm vindo a construir subjetividades e desejos.

Trata-se daqueles que já passaram pelas chamadas "políticas compensatórias", das quais, paradoxalmente, tentam não depender. Estes incorporaram uma certa ética de "autoconstrução" que não é necessariamente o produto de terem visto vídeos de auto-ajuda nas redes sociais, nem de terem internalizado alguma lógica neoliberal para o bem do capital, como alguns intelectuais acreditam.

Talvez esta corrente possa ser entendida como um produto direto e indireto das igrejas evangélicas e das suas múltiplas facetas. Não se deve esquecer que se no Brasil de 2010 havia pouco mais de 15% de evangélicos (pentecostais, neo-pentecostais, etc.), no de 2020 são 31%, mais de 65 milhões de brasileiros. De acordo com estimativas, dentro de 15 anos, os evangélicos serão a maioria entre a população brasileira.

Mas para além deste dado, o Brasil emergente não se limita ao Brasil evangélico. Está constituído por pessoas que incorporaram a cultura de iniciativa e que uma parte da sua identidade está integrada no ecossistema do empreendedor individual ou coletivo, característica comprovada na sua enorme resiliência e na sua capacidade de construir redes de relações e solidariedade, intercâmbios de bens e serviços.

Neste ambiente, estes batalhadores construíram a si próprios em torno de um discurso em que não aceitam tutela nem intromissão, principalmente devido a uma desconfiança absoluta em relação a qualquer coisa que não venha dos seus próprios esforços e ações. O Estado é uma figura distante e próxima na medida que desempenha um papel pouco relevante no desenvolvimento das suas vidas pessoais.

O Brasil emergente não está contemplado na atual esfera política disfuncional. Muito mudou social e culturalmente no país nos últimos 20 anos. Nem alienado nem intelectualizado, o Brasil emergente sabe o que não quer: uma repetição de tragédias. A questão que permanece é: para as eleições de outubro de 2022, a esfera política olhará para os milhões de pessoas deste Brasil emergente?

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