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Chile: transitando para um Estado plurinacional

O que se pretende é uma comunidade imaginária onde todos estão presentes com suas diferenças e autonomia

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Victor Tricot

Cientista político. Professor externo da Universidade de Girona e diretor acadêmico da SIT Study Abroad. Doutor em Processos Políticos Contemporâneos, Universidade de Salamanca. Especializada em movimentos sociais e povos indígenas e movimentos na América Latina.

A Convenção Constitucional chilena solicitou formalmente uma prorrogação para poder trabalhar durante mais três meses no esboço do texto constitucional. O anterior não surpreendeu a ninguém, pois desde os planos de trabalho iniciais esta petição entrava em qualquer cálculo.

O que foi mais surpreendente foi que a plenária da Convenção aprovou por 115 votos a favor (75%) e 34 contra que "Chile é um Estado Plurinacional e Intercultural que reconhece a coexistência de diversas nações e povos no marco da unidade do Estado" (excerto do artigo 4, Sistema político, Governo, Poder Legislativo e Sistema Eleitoral), aprovando também na mesma sessão que, "os povos e nações indígenas pré-existentes e seus membros, em virtude de sua livre determinação, têm direito ao pleno exercício de seus direitos coletivos e individuais" (excerto do artigo 5).

Este reconhecimento não é trivial, vem dar conta de décadas de luta de parte das organizações indígenas, que de distintos âmbitos têm brigado para visibilizar a situação de falta de proteção e subordinação em que se encontram.

A presidente da Convenção Constitucional do Chile, Maria Elisa Quinteros, discursa durante a apresentação da nova diretoria no antigo Congresso Nacional do Chile em Santiago, em 6 de janeiro de 2022 - Javier Torres/AFP

O reconhecimento formal da plurinacionalidade do estado seria um golpe direto ao colonialismo interno que Pablo González Casanova ilustrou tão claramente há décadas para descrever a situação dos povos indígenas do continente.

Desde sua conformação, a Convenção Constitucional representou uma mudança qualitativa na forma de representação política do país, instituindo que ela deveria ser paritária, com igual quantidade de homens e mulheres, e que também deveria existir assentos reservados para os povos indígenas.

Independentemente do atraso na ratificação dos assentos reservados ou do fato de que não representam necessariamente a porcentagem da população indígena do país registrada no censo, o fato é que 17 representantes indígenas de todos os povos presentes no país foram eleitos para representar de forma direta os seus povos, sendo um deles, a representante mapuche Elisa Loncon, eleita presidente da Convenção Constitucional.

Esta situação é diametralmente oposta a toda a história republicana do país, onde apenas em algumas ocasiões os representantes dos povos indígenas chegaram a cargos de relevância, tanto designados como eleitos, e onde sempre foram relegados a um papel secundário, sendo isso um sinal evidente de uma relação assimétrica onde a inclusão de suas demandas, necessidades ou visões de mundo não fazem parte do Estado-nação chileno.

Há ainda um caminho a percorrer, o processo constitucional ainda não foi concluído. A plurinacionalidade, após ser aprovada na Comissão, passou para a plenária onde foi aprovada. Isto permite que este artigo se torne parte integrante do rascunho que será apresentado ao país para aprovação no que é conhecido como plebiscito de saída, que deverá ocorrer aproximadamente 60 dias após o término do texto final.

O consenso na constituinte com respeito a este novo paradigma foi bastante amplo, conseguindo superar com claridade os dois terços exigidos como mínimo para aprovar qualquer artigo pela plenária. Entretanto, as críticas das forças conservadoras, tanto dentro como fora da Convenção, não diminuíram. Com argumentações muitas vezes cheias de falsidades, pretendem influenciar não para eliminar esses tipos de artigos do rascunho, mas para que o texto seja rejeitado no plebiscito de saída.

Em termos simples, o curso das estratégias da direita conservadora foi o de recusar a formação da Convenção (votar rejeição no plebiscito que iniciou o processo); defender o quórum de 2/3 à risca por ter sido aprovado na eleição; o trabalho disruptivo de seus membros eleitos da Convenção; a utilização da falácia como tática política, afirmar midiaticamente que a convenção é hegemonizada pela esquerda, sem deixar lugar para discordância; que o quórum de 2/3 é muito baixo; levantar a possibilidade de agregar uma nova alternativa no plebiscito de saída, alterando o acordado e aprovado eleitoralmente, entre outros.

Quando busca-se criticar a plurinacionalidade, tendem a fazê-lo com argumentos construídos na base de falácias, ignorância ou ambos. A participação de representantes indígenas, e a aprovação de distintos artigos que consagram seus direitos coletivos como povos, levaram à alegação de que um texto constitucional está sendo escrito para uma minoria ou que esta nova Carta Magna será indigenista, além da suprema ignorância que implica utilizar como argumento um conceito que remete ao atual presente na América Latina do século 20, onde os Estados cuidavam dos povos indígenas, mas sem eles.

O certo é que o reconhecimento da plurinacionalidade do Estado chileno vai precisamente na direção contrária. Deixa de lado os paternalismos e a relação colonial que o Estado chileno estabeleceu com os povos indígenas e elabora, em conjunto, uma nova constituição que leva isso em conta.

Trata-se de uma Constituição onde o Estado não faz um favor ao reconhecer as instituições ou os povos indígenas, mas que se tornam parte integrante dela, devendo adaptar às diferentes instituições do país ao novo paradigma.

Outra das acusações recorrentes feitas no âmbito do debate convencional sobre a plurinacionalidade e a autonomia dos povos indígenas é que o objetivo é dividir o país, criar um estado paralelo ou mesmo uma secessão.

Pelo contrário, este novo estado pretende ser uma contrapartida ao Estado-nação chileno do século 19, uma construção teórica e empírica onde unicamente se imagina a possibilidade de um Estado e uma nação, neste caso, povos indígenas sendo nações cujas culturas, idiomas, cosmovisões, histórias e subjetividades são dominadas e invisibilizadas, ou na melhor dos casos, folclorizadas.

Em outras palavras, o que se pretende é uma comunidade imaginária onde todos estão presentes com suas diferenças e autonomia, mas como assinalou Rosa Catrileo, membro da Convenção, durante o debate, "dentro das margens do Estado".

É inegável a essa altura que a revolta social de 2019 remexeu as bases da estagnada política chilena. Apesar de seus próprios erros e de seus acordos conservadores, o trabalho da Convenção Constitucional segue em um sentido similar, agenciando no projeto de texto constitucional mudanças substantivas como a paridade e perspectiva de gênero, a proteção ambiental e, naturalmente, a plurinacionalidade.

Esta última provavelmente não é uma solução mágica para todos os problemas ou conflitos entre o Estado e os povos indígenas, mas pode representar um começo para resolver a endêmica prosopagnosia do país, onde costumávamos nos olhar no espelho e reconhecer ascendência europeia enquanto, consciente ou inconscientemente, esquecíamos nossas raízes indígenas.

Resta ver como a plurinacionalidade se materializará, dado que a autodeterminação e as disposições de ambos os artigos devem concretizar-se, e isto encontrará resistência dentro do mesmo estado uninacional e unicultural que tem dominado por dois séculos.

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