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Descrição de chapéu LATINOAMÉRICA21 Guerra na Ucrânia Rússia

Vemos a invasão da Ucrânia e o mundo com olhos emprestados

Atribuímos maior ou menor importância a eventos de acordo com o interesse de outros países e de outras sociedades

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Rubens de Siqueira Duarte

Professor de Relações Internacionais e coordenador do Labmundo. Doutor em Política e Estudos Internacionais pela Universidade de Birmingham (Inglaterra)

Qual é a importância de ver o mundo de acordo com seus próprios olhos, ao invés de abraçar a leitura de outros? Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, os noticiários, revistas e as redes sociais foram inundadas pelo assunto. Em pouco tempo, manifestações de consternação e de empatia com os afetados surgiram na sociedade brasileira e nos demais países da América Latina.

Também não tardou para críticos lembrarem que há outras guerras que não receberam a mesma atenção ou comoção. Iêmen, Síria, República Centro-Africana, bem como os conflitos de raízes socioeconômicas na América Latina foram frequentemente usados como exemplos da seletividade. Claro que todo sentimento de solidariedade deveria ser bem-vindo, ainda que não ocorra em todas as ocasiões. Todavia, cabe questionar por que a guerra na Ucrânia gera um impacto maior em parte da sociedade do que outros conflitos, inclusive alguns que ocorrem diariamente dentro dos próprios países ou da região? Será que vemos o mundo com olhos emprestados da Europa ou dos Estados Unidos?

Homem caminha entre destroços de edifício destruído em Kharkiv, na Ucrânia
Homem caminha entre destroços de edifício destruído em Kharkiv, na Ucrânia - Fadel Senna/AFP

Em comparação com esses conflitos citados, a guerra na Ucrânia tem diferenças evidentes. Seria um erro não reconhecer as especificidades do que está ocorrendo. Para começar, envolve a Rússia, que é uma potência militar e nuclear, o que confere um potencial destrutivo maior a esse embate. A decisão de Vladmir Putin de colocar o arsenal nuclear em alerta sugere que um ataque com armas de destruição em massa não está tão distante assim.

Também há um poderoso peso simbólico no choque russo-ucraniano. Os recentes acontecimentos reascendem a memória da Guerra Fria, que claramente ainda está viva no imaginário coletivo, embora o colapso da União Soviética tenha ocorrido há mais de 30 anos. Desse modo, emergem todas as imagens propagandistas estereotipadas e leituras que descrevem a luta entre o bem e o mal. Além disso, o fantasma do comunismo curiosamente ainda está latente nas disputas ideológicas no cenário político regional e nacional em pleno século 21.

Os debates sobre a invasão da Ucrânia no caso brasileiro

As especificidades mencionadas importam e ajudam a entender como os brasileiros veem o conflito. Mas ainda é insuficiente. Como explicar o predomínio de análises que responsabilizam quase exclusivamente a Rússia pela guerra? Ou então o esforço de demonizar Vladmir Putin? E a vitimização da Europa? Pouco se fala na ação europeia de insistentemente incentivar e de fomentar partidos, instituições e movimentos que se opunham à aproximação com os russos. Em dezembro de 2013, quando o governo ucraniano decidiu por um acordo comercial com a Rússia, em detrimento da União Europeia, as revoltas que tomaram conta do país tiveram influência de países ocidentais.

Esse viés também é verificável nas análises de alguns especialistas. Insistimos em leituras que a Rússia está isolada, quando não está. Os 35 países que se abstiveram ou os 4 que além da Rússia (Belarus, Coreia do Norte, Eritreia e Síria) votaram contra a resolução na Assembleia-Geral da ONU que condenava as ações russas detêm mais de 50% da população do planeta.

Há quem diga que estamos vendo o fim de uma ordem mundial. Como sabemos, uma ordem mundial é composta de valores, princípios, regras e instituições que determinam o comportamento considerado apropriado para atores internacionais. A guerra na Ucrânia é resultado de um padrão de comportamento russo que entra em atrito com outro padrão de comportamento: a expansão da influência ocidental e de suas instituições na antiga zona de influência soviética. Foi assim na Geórgia em 2008, na Crimeia em 2014 e agora na Ucrânia.

Além disso, a ordem estabelecida já foi desafiada outras vezes, como na invasão do Iraque pelos EUA em 2003, na proliferação nuclear por países fora do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e em inúmeros atos e discursos de Donald Trump quando ocupava o posto de presidente dos Estados Unidos. Se não falamos de uma nova ordem mundial nesses episódios, é no mínimo curioso decretar essa mudança agora.

Talvez seja a hora de lembrarmos que a visão de mundo que predomina no Brasil não é brasileira. Lemos o jogo geopolítico internacional de acordo com o que nos ensinaram. Nossa percepção de mundo, de princípios, de valores, bem como de preconceitos e de estereótipos reflete uma história repleta de influências externas. Atribuímos maior ou menor importância a eventos de acordo com o interesse de outros países e de outras sociedades.

Em Relações Internacionais, há uma estrutura de produção de conhecimento que dificulta a criação de teorias por autores e autoras de países com menor poder relativo. Então, importamos conceitos, metodologias e leituras pensadas por pessoas em países poderosos para pensar a realidade deles. Com isso, importamos o etnocentrismo –não nosso, mas o etnocentrismo dos outros. Isso não chega a ser novidade, mas surpreende a incapacidade nossa em superar essa barreira. Em um mundo cada vez mais globalizado, o desenvolvimento de uma visão de mundo que seja brasileira torna-se fundamental para a construção de um projeto de país. Precisamos começar.

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