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Abrindo a matrioska da desigualdade de gênero

Avanços nos fazem correr o risco de não ver as camadas internas que escondem a verdadeira origem das desigualdades

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Fabián Echegaray

Cientista político e diretor da Análise de Mercado, consultoria de opinião pública sediada no Brasil

Poucas agendas de um modelo progressista geram tantas ramificações, mutações e contradições como as que visam alcançar a igualdade social e econômica entre os sexos.

Embora algumas iniciativas se baseiem em decisões relativamente simples e diretas, como estabelecer cotas femininas em lideranças corporativas e candidaturas políticas ou castigos às organizações que violam a isonomia salarial entre sexos por cargo com igual responsabilidade e desempenho, estes casos têm um impacto social limitado (embora altamente inspirador), já que afetam uma minoria do universo feminino.

Cabe inclusive se perguntar se esses avanços de nicho não alimentam, perversamente, uma percepção de melhoria generalizada capaz de anestesiar a ambição de realizações em campos mais significativos da batalha igualitária.

Bonecas matrioskas de líderes russos - Eduardo Knapp/Folhapress

Um estudo da consultora Market Analysis junto com a rede global de pesquisadores WIN revela que para pouco mais de 45% dos 33.230 entrevistados, em 39 países, as mulheres ainda têm menos oportunidades do que os homens em suas carreiras e empregos.

Entre os latino-americanos, esta percepção é mais acentuada, chegando a 53%, só que, se concentrarmos a atenção no que pensam as mulheres no maior mercado laboral da região, o Brasil, esta percepção de desigualdade chega a um fenomenal 75%.

Algo parecido ocorre quando nos concentramos nos resultados das lutas igualitárias. Perguntados até que ponto a equidade de gênero se materializou em sua sociedade, 18% dos adultos da pesquisa mundial declaram que definitivamente ocorreu com eles.

Comparativamente, na Argentina, Brasil, México, Peru, Colômbia e Chile, estas porcentagens mal chegam à metade: 9%. Se pusermos uma lupa só no que pensam as mulheres, não chegamos sequer a 8%. Podemos imaginar progressos concretos e de larga escala rumo à igualdade para as maiorias femininas quando é tão difundida a sensação de desvantagem?

Como dizíamos, avanços institucionais como cotas ou sanções por tratamento desigual entre gêneros são bons porque estabelecem um princípio ou regra do jogo capaz de ordenar e inspirar outras esferas, mas nos fazem correr o risco de não ver as camadas internas de condicionamento em larga escala da população feminina que, como as matrioskas, escondem a verdadeira substância da origem das desigualdades.

Um dos gargalos das lutas igualitárias que interpelam normas sociais adversas à equidade (e portanto abrigam uma camada ainda mais nuclear de problemas) está relacionado à distribuição de responsabilidades entre mães e pais quando um novo ser chega ao lar. Nem todas as mulheres com filhos estão no mercado de trabalho e, na América Latina, menos da metade das que estão são protegidas pelas leis trabalhistas do emprego formal.

Estas considerações sobre os obstáculos à igualdade entre gênero foram potencializadas pela pandemia, que não só marginalizou as mulheres do mundo do trabalho em uma proporção infinitamente maior do que os homens, como também as obrigou a estarem disponíveis para o âmbito profissional ao recair sobre elas as responsabilidades não remuneradas de cuidado, manutenção do lar e gestão das tarefas e do espaço doméstico em residências que, subitamente, se tornaram centros multitarefa: escolas, escritórios, restaurantes, ginásios, salão de jogos e recreação, lounges de sociabilidade.

Uma das abordagens mais objetivas e também mais ignorada para concretizar essa valorização ocorre através da implementação e ampliação efetiva das licenças de maternidade e paternidade, a promoção e naturalização da paternidade ativa ou responsável e uma redefinição dos padrões de como indivíduos e organizações devem se comportar frente às futuras mães.

Estudos recentes confirmam a manutenção da chamada penalidade materna: quase metade das brasileiras que tiraram licença maternidade caem no desemprego 24 meses após seu parto.

Longe dos parâmetros europeus enquadrados no modelo de estado de bem-estar e estimulados pelo declínio populacional e pressão do sistema de seguro social, os países da América Latina adotam licenças de maternidade curtas, em sua maioria de 12 a 14 semanas.

Brasil, Chile e Colômbia lideram com cerca de 18 semanas. Alternativas promotoras de igualdade de gênero como a licença paterna não estão no radar da população geral e essas licenças paternas se caracterizam por sua brevidade (apenas 5 dias).

Além disso, estimulados a pensar em um formato de responsabilidades compartilhadas onde os pais podem levar um tempo maior com seus filhos ou expandir esse benefício de mais tempo exclusivamente para as mães, os dados da consultora Market Analysis revelam uma nítida brecha de intenções, na qual os pais apoiam fortemente o favorecimento de licenças para as mães de modo que elas aumentem sua dedicação, mas se opõem a se envolverem em apoiar licenças paternas mais ambiciosas.

O mesmo estudo revela que não se trata tão somente de oportunismo: existe uma auto percepção da impotência paterna na criação de filhos que é muito mais acentuada entre os pais do que entre as mães. Assim como permanece uma leitura tradicionalista do lugar da mulher com filhos em torno da vida familiar e materna antes da profissional, visão que, cabe dizer, é muito mais endossada pelos homens do que pelas mulheres.

Estes contextos de atitudes são um verdadeiro desafio para fechar as brechas de gênero, acentuadas pela chegada da maternidade. É aqui onde a ação conjunta de organizações não governamentais, instituições políticas e estatais (legislando ou supervisionando o cumprimento das licenças) e empresas (facilitando e expandindo licenças maternidade e paternidade) pode fazer a diferença, pavimentando o caminho para a igualdade de oportunidades e resultados.

Como em um conjunto de matrioskas, no final das camadas mais superficiais de igualitarismo de gênero relativas a equiparações reguladas sobre salários, oportunidades formais e seleções de lideranças, encontramos a estatueta do quanto a maternidade é um capital ou um obstáculo para uma sociedade que busca igualar os sexos.

Na medida em que a mulher é forçada a viver a maternidade em termos que a condicionam como uma penalidade para sua vida profissional, o restante do edifício da igualdade de gênero é construído sobre pilares fracos. A última peça da matrioska rumo a cristalizar uma maior igualdade exige um consenso não só entre os atores organizados da sociedade, mas também um esforço para aproximar visões de mundo ainda tensas entre homens e mulheres de nossa região.

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