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Existe democracia num país que mata ativistas e jornalistas?

Brasil precisa encarar de frente os obstaculos colocados à sua democracia, entre eles a perseguição a jornalistas e o genocídio dos povos indígenas

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Rafael Rezende

Doutor e pesquisador de sociologia na UERJ, foi pesquisador visitante na Universidad de Buenos Aires

Desde que Jair Bolsonaro saiu vitorioso das eleições presidenciais de 2018, muitos são os analistas que, quase sempre com razão, apontam crescentes ameaças à democracia no Brasil.

Entretanto, mesmo antes da chegada do ex-militar de extrema-direita ao poder, o projeto democrático brasileiro já demostrava significativas fragilidades. Duas delas voltaram a assombrar o país após o desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira: a perseguição a jornalistas e o genocídio dos povos indígenas. Este, intimamente ligado com o ecocídio em curso no que restou dos biomas do Brasil.

Dom e Bruno viajavam de barco pelo interior do estado do Amazonas, perto de uma região conhecida como Vale do Javari. O jornalista do The Guardian recolhia material para um livro que escrevia sobre a Floresta Amazônica quando ele e o ex-funcionário da Fundação Nacional do Índio foram declarados desaparecidos.

Familiares e amigos do indigenista da Funai Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips protestam na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2022 - Pilar Olivares/Reuters

Posteriormente, vieram à tona as ameaças que Bruno sofria de garimpeiros e caçadores que costumavam invadir terras indígenas para explorar suas riquezas. Com bastante atraso e pouco interesse, o Governo Federal afirmou ter mobilizado as Forças Armadas para efetuarem buscas pela dupla, que ainda não foi encontrada.

Até o presente momento, não é possível saber o que aconteceu com Dom e Bruno, mas há reais motivos para preocupação. Segundo o Observatório de Jornalistas Assassinados da Unesco, desde 1993, 52 jornalistas foram executados no Brasil. Na América Latina, apenas o México tem mais jornalistas assassinados no período mencionado.

Nem mesmo na Colômbia, país que tenta superar um longo e sangrento conflito armado, tantos profissionais foram mortos. Para piorar a situação, a mesma Unesco afirma que os casos que acabam não solucionados são a maioria no Brasil.

No Brasil, as ameaças a jornalistas são constantes e partem de políticos, empresários, latifundiários, garimpeiros, traficantes de drogas e milicianos.

Até mesmo os filhos do atual presidente utilizam suas redes sociais para incentivar a violência contra profissionais da comunicação, chegando ao ponto de zombar da brutal tortura sofrida por uma conhecida jornalista durante a ditadura militar brasileira.

Criar um ambiente onde os profissionais da comunicação possam exercer sua profissão sem temor é algo indispensável para a democracia. Esperamos que Dom Phillips e Bruno Pereira sejam encontrados com vida e possam prontamente retornar às suas atividades. Infelizmente não foi o que ocorreu com Eranildo Ribeiro da Cruz.

Há pouco menos de um ano, o jornalista e militante social foi encontrado morto e com sinais de tortura, no estado do Pará, vizinho do Amazonas, onde Dom e Bruno estão desaparecidos. Eranildo cobria a política local e a atuação de movimentos sociais na região. Possivelmente, por não ser cidadão europeu e não trabalhar para nenhum grande veículo de comunicação, seu assassinato quase não teve repercução fora do Pará.

Muito já foi falado sobre o genocídio dos povos indígenas nas Américas, no entanto é comum tal processo ser tratado como um conjunto de eventos perdidos em um passado distante. O que observamos diariamente no Brasil é que ele segue em pleno vigor e está associado à destruição do meio ambiente e a um modelo econômico que reproduz desigualdades históricas.

Garimpeiros, madeireiros, latifundiários e grandes empresas mineradoras avançam sobre a Floresta Amazônica e sobre o cerrado, explorando seus recursos, deixando um rastro de destruição e morte. Tudo isso, comumente com apoio ou negligência de parte das autoridades.

O próprio Presidente da República é um notório defensor da exploração de atividades econômicas em terras indígenas e se orgulha de não ter demarcado nenhuma reserva em seus quatro anos de governo.

São inúmeros os problemas econômicos, políticos e sociais do Brasil, mas alguns deles estão na base de toda uma cadeia que impede a realização do projeto democrático e da concretização da cidadania prometida pela Constituição de 1988.

Nesse sentido, a eleição e o governo de Jair Bolsonaro não devem ser interpretados como meros pontos fora da curva, mas como a ponta de um iceberg que não pode ser contornado com a eleição deste ou daquele candidato no pleito que ocorrerá na segunda metade deste ano. O Brasil precisa encarar de frente os obstaculos colocados à sua democracia, entre eles a perseguição a jornalistas e o genocídio dos povos indígenas.

Em suma, o desaparecimento de Dom e Bruno nos faz questionar: é possível falarmos em uma democracia de fato enquanto jornalistas e militantes são calados à força quando ousam importunar os poderes estabelecidos? É plausível falar de cidadania enquanto povos inteiros são exterminados a bel-prazer daqueles que olham para a natureza como fonte de lucro e não de vida?

Precisamos de mais democracia para superar o violento projeto colonial que fundou e ordenou o Brasil explorando a natureza, aniquilando os povos indígenas e silenciando as vozes divergentes.

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