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Violência letal no Brasil: as vítimas são negras, mas o crime nunca é por raça

A cada mês, novos casos nos noticiários nacionais, e tantos outros que não geraram a mesma comoção pública, mas que adensam as estatísticas oficiais sobre a morte violenta no país

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Andréa Lopes da Costa

É socióloga, professora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas e Desigualdades Sociais, coordenadora do CP Sociologia das Relações Étnico-Raciais na Sociedade Brasileira de Sociologia.

O racismo é um organizador silencioso das relações sociais e seu impacto é como um espectro: se por um lado todos afirmam que ele existe, por outro poucos confirmam ter visto. Fácil de reconhecer na agressão verbal, mas dificilmente reconhecido como catalisador para conflitos sociais diversos, como a violência letal contra pessoas negras. No Brasil, o racismo se mantém por meio de um sofisticado mecanismo de "desracialização" da realidade, de tal forma que, utilizando ironia: mesmo quando as vítimas são recorrentemente negras, o crime nunca é por raça.

Ao fim de 2022, as análises certamente farão alusão aos inúmeros casos de violência letal envolvendo pessoas negras. Janeiro começou com Moïse Kabagambe, refugiado congolês espancado até a morte em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, após cobrar 200 reais referentes a diárias de trabalho. O choque generalizado deveu-se tanto à contundência das agressões, como ao local onde ocorreram: na orla de um dos bairros mais caros do município.

O Quiosque Moïse foi entregue para a família Kabagambe, no Parque Madureira Mestre Monarco. O espaço vai abrigar um memorial para celebrar a cultura africana. - Eduardo Anizelli

Como reação, foi convocada uma grande manifestação. Em um domingo, na praia, sob o sol. Enquanto, na areia, banhistas aproveitavam o verão carioca, no asfalto, representantes de vários segmentos sociais e religiosos afirmavam: "Foi um crime cometido por racismo". Em depoimento, na delegacia, os que o mataram afirmavam que não.

Em fevereiro, mais dois casos: um homem morreu alvejado pelo vizinho ao ser confundido com um ladrão em São Gonçalo; e um vendedor de balas foi morto enquanto trabalhava na Estação das Barcas, em Niterói, por um policial militar de folga, posteriormente indiciado por homicídio doloso qualificado por motivo fútil.

Já em março, três jovens bebiam em um bar na Gamboa, em Salvador, quando foram mortos durante ação policial. Outro jovem, com 17 anos, foi morto em abril, ao sair de um evento beneficente para crianças na comunidade de Dourado, em Cordovil, no Rio de Janeiro, e teve seu corpo jogado em um valão.

Em maio, após ser abordado pela Polícia Rodoviária Federal de Sergipe enquanto andava de motocicleta, um homem foi colocado em um camburão, e, após inalar gás, morreu em decorrência de "insuficiência aguda secundária à asfixia", de acordo com laudo divulgado.

Em comum: todos negros. A cada mês, novos casos nos noticiários nacionais, e tantos outros que não geraram a mesma comoção pública, mas que adensam as estatísticas oficiais sobre a morte violenta no país.

Um ciclo que se repete

Mas, não há novidade, 2022 reproduz anos anteriores nos quais as agressões ocorreram em supermercados, lanchonetes e shoppings de grandes centros urbanos, favelas e periferias. Mudam os cenários, mantém a letalidade contra pessoas negras. E, como em todos os anos, manifestações são organizadas, sem que os números da violência sejam reduzidos. Assim, mortes se sucedem, causam comoção, tomam espaços na grande mídia, por vezes, geram passeatas, reportagens investigativas e logo são esquecidas.

Em dezembro de 2022 poucos saberão os nomes das vítimas do início do ano. E, em janeiro de 2023 os indicadores anuais são reiniciados.

Espancamento, assassinato por engano, suposto envolvimento com crime, lugar errado na hora errada, excesso na abordagem, motivos distintos que, em um primeiro olhar, contradizem a ideia de que o racismo seria a razão para as mortes de pessoas indistintamente negras. Afinal, qualquer um independentemente de raça poderia estar na mesma situação.

Seria acaso se, no Brasil, as chances de uma pessoa negra sofrer violência letal não fossem 2,6 vezes maiores que a de pessoas brancas, ou se as pessoas negras não tivessem sido 76,2% das vítimas, de acordo com o Anuário brasileiro de segurança pública, publicado em 2022. E, se contarmos apenas os jovens entre 15 e 19 anos, esse percentual sobe para 80%.

Manifestante faz protesto na frente de um supermercado em Porto Alegre após a morte de João Alberto Silveira Freitas por um agente de segurança - Ricardo Moraes/Reuters

Mulheres negras são igualmente vulneráveis, cuja taxa de homicídio foi de 4,1 em comparação à 2,5 de mulheres não negras, tornando suas chances de morte violenta 1,7 vezes maiores.

Busca-se justificar esses dados com base em eventos incontestáveis, como a condição de vulnerabilidade na qual populações negras periféricas se encontram, a exposição à criminalidade e insegurança social. O foco na realidade social pulveriza a leitura sobre as causas, evidenciando o epifenômeno e escondendo o elemento propulsor: o racismo, que, nos casos de violência letal, é sempre colocado em questão.

Isso se deve a dois fatores: o primeiro reside em um ideal de nação, ainda no início do século XX, quando entre a impossibilidade de embranquecimento da população e o pessimismo da aceitação das teorias da degenerescência, o Brasil optou por um elogio à mestiçagem como constitutiva de sua identidade. Assim, o ideal de morenice e as narrativas de democracia racial foram atravessados pela crença na inexistência de raça. Na realidade, por um silenciamento sobre a existência de raça.

Um outro fator foi a necessária guinada histórica produzida no estudo das relações raciais. Em contraposição às análises, produzidas ao longo dos anos 1950, que explicavam a condição do negro sob a justificativa do preconceito de cor, estabeleceu-se, a partir dos anos 1970, um conjunto de estudos que evidenciava as desigualdades raciais.

Enquanto o preconceito era associado a práticas individuais e subjetivas, localizar a assimetria entre negros e brancos em um sistema social de construção e reprodução de desigualdade, verificável a partir da análise de dados (escolaridade, empregabilidade, moradia, entre outros), permitiu não somente a compreensão das estruturas de produção de desigualdade racial, mas, sobretudo, a reivindicação por políticas de reparação.

Contudo, o racismo, como um sistema de produção de relações de poder e subalternização, não se constitui apenas de dimensões objetivas. Com as recentes menções ao racismo estrutural voltamos a observar seus efeitos difusos.

O racismo prescinde de objetificação: as pessoas não são mortas objetivamente por serem negras, elas são matáveis por serem negras. O racismo prescinde de racionalização: ele se sustenta nas representações de que negros são perigosos, agressivos, violentos, suspeitos, culpados, descartáveis.

O racismo se fortalece na sua invisibilidade, ainda mais que na sua visibilidade.

Desarmar sua bomba é exercício complexo que demanda olhar para dentro do abismo, e permitir que ele olhe de volta. Reconhecer raça como elemento organizador da realidade é reconhecer o racismo nas bases das desigualdades, mas sobretudo como estruturador de nosso sistema de representações sociais. Nomear permite enfrentar.

E, para o caso da violência letal contra pessoas negras, vitimadas em abordagens equivocadas, em confrontos e em enganos, ou contra jovens que morrem em decorrência do genocídio racializado, ou ainda contra pessoas que sucumbem em chacinas realizadas em favelas e periferias, é fundamental reconhecer: não é abordagem, não é criminalidade, não é pobreza, não é confusão. É racismo.

E, enquanto este texto é concluído, provavelmente, mais uma pessoa negra estará sendo morta, sem que a razão tenha sido o racismo.

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